"Os garis poderiam ser mais reconhecidos, mas estamos longe disso"

- ANDRÉ ESTEVES

Data 10/03/2018
Horário 09:37

A cor chamativa do uniforme não faz com que os garis passem menos despercebidos. Embora acompanhe o processo de desenvolvimento das cidades, a profissão segue pouco reconhecida pela sociedade. A invisibilidade, no entanto, não desqualifica ou minimiza a importância do trabalho destes profissionais – figuras indispensáveis para a manutenção dos espaços urbanos, uma vez que deixam as ruas limpas e livres do mau cheiro. O preconceito e o sol quente não abalam a margarida Maria de Lourdes da Silva, 59 anos, que se dedica ao serviço há aproximadamente três décadas. A varrição pública não foi a única atividade que já exerceu na vida, mas é a que realiza há mais tempo.

Ela nasceu no norte do país e veio para Presidente Prudente com 4 anos de idade. Aos 5, já ajudava o irmão mais velho na roça. Posteriormente, trabalhou no Frigorífico Bordon, na Cica (Companhia Industrial de Conservas Alimentícias) e no setor de limpeza do antigo Shopping Americanas. Por três anos e seis meses, atuou como margarida na extinta empresa Pioneira e, em seguida, migrou para a Prudenco (Companhia Prudentina de Desenvolvimento), onde permanece há 25 anos.

Foi nas ruas que Maria de Lourdes fez o seu pé de meia e criou sozinha os cinco filhos. Responsável pela limpeza de um trecho do quadrilátero central, ela não esconde a alegria de ser escolhida pela reportagem para compartilhar um pouco de sua história. “É bom ser lembrada”, afirma. Na entrevista concedida a O Imparcial, a margarida conta sobre a sua rotina, os desafios e os planos para a aposentadoria, que traz a promessa de descanso após anos de trabalho braçal. Confira abaixo:

 

O Imparcial: Por que a senhora decidiu seguir esta profissão?

Maria de Lourdes: Comecei na Pioneira. Quando eles mandaram o povo embora, passei direto para a Prudenco, onde continuo até hoje. Eu tinha minhas crianças pequenas e precisava cuidar delas, porque eu era sozinha. Era não. Graças a Deus, sou até hoje. Já que eu tinha que cuidar dos meus filhos, precisava continuar trabalhando, porque se ficasse parada, como eu ia sustentá-los? Então não tinha outro jeito. Gosto de trabalhar na Prudenco e é daqui que eu tirei o meu sustento, criei os meus filhos e construí a minha casa.

 

Como é a sua rotina e seus horários?

Eu moro no Residencial Terceiro Milênio, então pego o ônibus das 5h45. Chego ao setor por volta das 7h e saio do serviço às 17h. Durante a semana, sou responsável pela Casemiro Dias, Rua Bela e Vicente de Bacaro. Faço a varrição sozinha, mas a capinagem em duas pessoas para poder adiantar o setor, porque tem outros vazios. De forma geral, a gente varre, cata o lixo e põe na calçada para o coletor passar e pegar. Se precisar, a gente também faz o rastelo e pinta. Tem setor que consigo fechar em dois dias, mas se não der, fazemos em três. O ideal é que seja realizado em dois, porque aí vamos cobrir os outros setores que estão vazios. A gente deixa o vidro em um canto ou numa caixa para retirarem. Animal morto é a carrocinha que pega. Tem o caminhão que passa para recolher a madeira. Já o material reciclável, normalmente fica em sacolinha, mas quando está no chão, eu levo tudo junto.

 

Você acredita que as pessoas deveriam ser mais conscientes com relação ao lixo que produzem? Grande parte do material recolhido não poderia estar nas lixeiras ao invés de estar nas ruas?

Poderia, mas o pessoal não tem consciência. Muitos passam, veem o carrinho da limpeza, mas preferem jogar o lixo no chão do que dentro do carrinho. Em outros casos, esperam a gente acabar de varrer para colocar o lixo para fora. Depois ligam lá [na Prudenco] e reclamam que não varremos. A gente varreu, mas vai fazer o que? Falam que temos que obedecer aos moradores, mas eu não tenho paciência e já meto a boca.

 

A senhora gostaria de ter outra profissão ou está feliz como margarida?

Não, eu já me acostumei nessa profissão e quero sair daqui para minha casa. Estou feliz, faço o que gosto e pretendo continuar. O povo reclama que a Prudenco é isso e aquilo. Eu não tenho nada a dizer, porque todo mês recebo meu pagamento e o ticket. Tenho com o que me sustentar. Estou trabalhando, ganhando meu dinheiro e cuidando da minha família, então não tenho o que reclamar. A renda é suficiente para me manter. Eu ganhei um terreno, construí minha casa com o dinheiro daqui e estou bem. Eu vivia de aluguel, agora estou mais sossegada porque tenho a minha casa. Ela não está acabada ainda, mas vou investindo aos poucos e segurando o resto para poder dar uma viajada.

 

Você percebe que os garis ainda são alvos de preconceito?

Tem muito. Às vezes, a gente pede água para os moradores e eles dão água quente ou em um copinho descartável. Então eu já trago de casa. Assim não preciso pedir para ninguém. Carrego minha garrafa com gelo todos os dias. A gente encontra de tudo nas ruas. Tem gente muito boa, mas também tem gente muito ruim. Os garis poderiam ser mais reconhecidos, só que estamos longe disso.

 

Quais são os desafios enfrentados no dia a dia?

O sol quente é o principal. A chuva até que é boa, porque pelo menos deixa o tempo fresco. Já o sol torra os nossos miolos. A gente utiliza filtro solar, chapéu, luva, blusa comprida, calça e sapatão, que são para proteger. A hidratação é feita quando as pessoas dão água. Quando não dão, não tem problema, porque trago a minha de casa. Tomo ali e pronto. Em dias de chuva, a limpeza é interrompida, mas voltamos assim que para de chover. Já nos dias de sol, a gente racha o dia inteiro. Eu já tive alergia a uma sacaria, mas depois sarou e nunca mais tive problema, porque me cuido.

 

É possível notar que a senhora trabalha com fones de ouvido. O rádio é uma forma de distração?

Eu não sei se é liberado, mas não fico sem meu rádio. Ouço a oração de manhã e gosto de ouvir o terço ao meio-dia. Estou trabalhando e me distraindo. Assim não preciso parar para conversar com ninguém e nem fico pensando abobrinha.

 

Para você, qual é a importância do trabalho do gari?

É importante. Eles [moradores] dizem que não dependem tanto da gente, mas dependem, porque tudo que jogam no meio da rua, a gente tem que catar. Se não fizermos isso, eles não saem para varrer. Sem os garis, a cidade estaria suja. Tem gente que fala que há tanta cidade suja e nojenta, enquanto aqui é tão limpo. Então por que não reconhecem o nosso serviço? Nos bairros, o pessoal diz que o varredor de rua não passa. Eles acham que a gente tem que sair batendo palma e avisando: “Tô passando!”. Nós passamos, mas não vamos ficar gritando. Depois que o bairro está limpo, eles vêm e jogam o lixo na rua. Por que não colocaram em uma sacolinha se viram que o lugar está limpo? Não, preferem descartar na rua e depois ligar na Prudenco para dizer que o varredor não passou. Eles falam: “Ah, eu paguei imposto”. Todo mundo paga. Eu também pago. Nem por isso fico na frente da minha casa varrendo todos os dias.

 

Quem é a Maria de Lourdes fora da Prudenco?

Sou solteira, mas tenho cinco filhos e sete netos. Nunca fui casada, morei junto por um tempo, mas depois ele foi para um canto e eu para o outro. Criei meus filhos sozinha, graças a Deus. São maiores de idade e só um está parado. Uma das minhas filhas também trabalha na rua, lá no Jardim Bongiovani. Aos finais de semana, eu faço alguma coisa em casa, porque meus filhos se juntam para me ajudar. Tenho uma filha que é casada e mora lá perto. Ela sempre lava uma roupa e faz uma coisa para a gente. Quando volto do trabalho, gosto de assistir filme e minha novela. É um tempo que tiro para descansar. Faço o serviço de casa, arrumo a janta e depois paro um pouquinho para assistir televisão e desligar a mente.

 

Quais são seus planos para o futuro?

O único sonho que tenho é poder descansar assim que eu conseguir a aposentadoria. Mereço depois de tantos anos trabalhando. Tenho que descansar ao menos para poder morrer [risos]. Além disso, quero ir para o norte e ver os parentes que eu não conheço. Minha família inteira mora lá. Éramos em 14 irmãos e eu só conheço duas. Morreram três ou quatro. Quero ir pra lá e conhecê-los ao menos uma vez na minha vida. Eu vim para Prudente com meu irmão, que tinha acabado de se casar e buscava uma vida melhor. Ele me trouxe para ficar por uns dias e esses dias se transformaram em anos. Estou aqui até hoje. Sou feliz em Prudente. Não quero ir para mais nenhum lugar. É daqui para o cemitério. Mas ainda espero viver bastante tempo para poder cuidar dos netos.

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