A policial militar Maria Verginia Kiil Piza Leite, 48 anos, é uma figura bastante esperada nas escolas. Todos os anos, ela visita turmas do quinto ano para a aplicação do Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas), iniciativa desenvolvida pela corporação com o objetivo de evitar que crianças e adolescentes em fase escolar se envolvam com drogas. O uso de substâncias lícitas e ilícitas não é o único tema explorado pela instrutora, que se compromete ainda com a formação cidadã e do espírito de responsabilidade social dos estudantes. Juntos, eles discorrem sobre autoconhecimento e autocontrole, tomada de decisão responsável, alteridade e o lidar com desafios e responsabilidades.
O gosto pelo relacionamento com crianças e adolescentes vem de formação. Graduada em Pedagogia e Serviço Social, a policial viu no Proerd a oportunidade de agregar os conhecimentos acadêmicos à carreira profissional. Há 21 anos na corporação e 16 como instrutora do programa, ela percorre uma média de 30 escolas por ano, que vão desde aquelas instaladas na zona urbana às espalhadas em assentamentos.
Mãe de três filhos, Verginia não só policia, como também é policiada. Quando vai a algum evento, tem o cuidado de não consumir bebidas alcóolicas, pois acredita que também deve dar o exemplo fora das salas de aula. Em entrevista concedida a O Imparcial, a agente relata sua trajetória dentro da corporação militar, o envolvimento com o programa preventivo e a importância que enxerga na proximidade entre polícia e escola. Acompanhe nas linhas a seguir:
O Imparcial: Quando se pensa na polícia, a imagem comum que vem à cabeça é do agente combatendo práticas ilícitas e prendendo infratores, no entanto, há também o trabalho educativo realizado pela corporação. Quando decidiu se tornar uma policial, você já tinha a intenção de ficar responsável por esta parte ou queria ser uma agente que trabalha em operações do dia a dia?
Verginia: Não, eu nem imaginava. Prestei o concurso para trabalhar na polícia ostensiva, porém, ao entrar para a corporação, conheci esse programa de prevenção às drogas e acabei me interessando. Como eu já era formada em Pedagogia, tinha um relacionamento com crianças e defendia a ideia de prevenção, acabei, depois de dois anos trabalhando na rua, fazendo o curso para ingressar no Proerd, no qual estou há 17 anos. Eu costumo dizer que amo o que faço e amo o Proerd, mas não me dedico somente a esta parte. Algumas vezes, os instrutores também são chamados para atuar em alguns eventos, como carnaval e eleições. Ou seja, quando há a necessidade de aumento do policiamento ostensivo, eu saio do programa e vou para a rua. Tenho que ser policial preparada para todo tipo de situação.
Para você, qual a importância do Proerd?
É conscientizar crianças e adolescentes a não se envolverem com drogas e incentivá-las a replicarem tudo aquilo que aprenderam junto ao seu meio social. O Proerd começa na fase ideal da vida dos alunos, que é a pré-adolescência. Nesse período, eles apresentam muitas dúvidas sobre o que veem lá fora, por isso, o programa visa orientá-los e alertá-los sobre esses perigos. Durante as aulas, não mostramos imagens de drogas, mas, sim, o que elas fazem com o corpo humano e com a sociedade. É um trabalho de prevenção para que não entrem nesse mundo. As aulas são dinâmicas, com teatros e vídeos, justamente para a criança interagir. Os estudantes amam e não veem a hora do policial entrar na sala. E os frutos a gente colhe lá na frente. Já pisei em muitas escolas e tive alunos que atualmente estão fazendo faculdade, mas ainda se lembram do programa. Outro dia, um menino que está cursando Medicina apareceu na minha casa para agradecer tudo o que eu havia lhe ensinado no decorrer do Proerd. É uma emoção muito grande e que faz valer a pena.
Você considera fundamental essa aproximação entre polícia e escola?
Sim, quando há essa proximidade, a criança encontra no policial a sensação de apoio e segurança e vê nele alguém em quem pode confiar. Eles se sentem livres para chegar e conversar, porque os alunos precisam ter essa visão de que o policial está indo para ajudar e não para gerar medo. No começo, os estudantes ficam bastante receosos, mas depois acabam interagindo conosco, estabelecendo vínculos e compartilhando suas experiências. Nas aulas do Proerd, temos uma caixinha na qual colocam as perguntas que nos querem fazer. Como a identificação não é obrigatória, eles se sentem à vontade para tirar dúvidas e também denunciar algo. Vamos respondendo conforme as aulas e na medida do possível, a fim de que tenham um esclarecimento. No geral, são questionamentos sobre drogas, violência, alguma coisa que aconteceu na vida deles ou em casa. Se detectamos uma situação de violência doméstica, por exemplo, como não conhecemos a letra do aluno, conversamos com os profissionais da escola para que ajudem a intervir no caso. É por isso que é tão importante haver uma parceria entre polícia, escola e família para que os resultados deem certo.
Você mencionou que o Proerd começa a ser aplicado aos alunos a partir de 9 anos. Os policiais já se depararam com a situação de um estudante que estava envolvido com drogas nessa idade?
Nós nos aproximamos de crianças que têm um conhecimento maior sobre este universo por conta do próprio meio em que vivem. Às vezes, os estudantes recebem orientações distorcidas em casa ou observam situações distorcidas nos bairros onde moram. É aí que vem a nossa orientação para oferecer suporte e segurança.
E a polícia tem recebido uma recepção positiva das crianças?
Tanto das crianças quanto dos pais. Temos ciência de casos em que a criança começa a transmitir tudo que aprendeu para a família e convence os pais a abandonarem o cigarro ou a bebida, que são as drogas lícitas que os pequenos conhecem mais. Além do Proerd, a polícia também promove campanhas sobre tabagismo e álcool com a participação de crianças, o que contribui ainda mais para a formação desses agentes replicadores.
Como instrutora do Proerd, é difícil receber a notícia de que uma criança ou adolescente foi detido por se envolver com drogas?
Eu fico triste, pois a nossa sociedade está vivendo uma situação difícil. No entanto, há pesquisas acadêmicas que comprovam a eficácia do Proerd e mostram que a grande maioria das crianças que passa pelo programa não apresenta registros de envolvimento com drogas. Essa é a nossa resposta. Sentimos que o nosso trabalho foi feito, embora seja de formiguinha.
Quando surgiu o seu interesse pela polícia?
Desde criança, sempre fui apaixonada pela corporação. Eu costumava dizer que, quando crescesse, seria policial. Na época em que decidi prestar concurso, havia poucas vagas para as mulheres, porém, não deixei isso me desanimar. Na primeira vez, não consegui passar. Na segunda, deu certo. Até chegar nisso, foram muitas renúncias – renúncia a sair de casa, renúncia a namorar –, que, afinal, valeram a pena. É o que sempre digo para as crianças: tenha fé e vá em frente. Lute pelo que quer e você vai conseguir. Eu passo essa mensagem para os alunos e eles ficam encantados: “seu sonho pode se tornar realidade? Pode, mas você precisa ter foco e se esforçar”.
Então as drogas não são o único assunto abordado em sala de aula?
Não, trabalhamos outros temas, como autoestima, bullying e pressão social. Para a criança não se envolver com drogas, é preciso desenvolver a autoestima, porque, eventualmente, alguém vai lhe oferecer algo e ela precisa ter autoconfiança para resistir.
Você apontou que, antigamente, era mais difícil se tornar uma policial feminina. Hoje o cenário é outro?
Sim. Antes o concurso era separado por gênero e a profissão era bem mais masculina. Atualmente, entra para a corporação quem tem competência, independente de sexo. Isso é um passo muito grande para as mulheres, que estão cada vez mais atingindo os campos profissionais.
Em sua opinião, qual a importância da figura feminina dentro da polícia?
Tanto os homens quanto as mulheres trabalham igual. Não há divisão de serviços. Somos policiais militares. É um espaço pelo qual a mulher lutou e conquistou. No Proerd, também não há distinção entre instrutores do sexo masculino e do feminino. As crianças conseguem desenvolver confiança com qualquer um, porque todos os policiais estão ali com o mesmo objetivo.
Desde que entrou para o Proerd, há histórias que marcaram a sua carreira profissional?
Sim, a mais marcante foi de uma carta que eu recebi de um pai que estava preso e agradecia por tudo o que havíamos feito pela sua filha. Ela lhe contava sobre as aulas do Proerd durante as visitas ao presídio. Isso me emocionou muito, porque ele ‘caiu’, mas não queria isso para a filha. Houve ainda a experiência de um pai que era alcóolatra e deu um testemunho de que parou de beber por causa dos incentivos do filho. Outro fato é quando um jovem que já está na faculdade encontra você, te abraça e te agradece ou quando você chega desanimada para dar aula e uma criança diz: “que bom que você veio, eu estava te esperando”. São pequenas coisas que faz a gente não desistir. Como em qualquer profissão, há horas em que ficamos desanimados, mas esses estímulos nos reerguem.
Quais são seus planos futuros dentro da profissão e fora da corporação?
Além do Proerd, somos muito solicitados para palestras em igrejas e empresas, onde falamos sobre temas como drogas, autoestima e motivação. Então, o meu objetivo é, mesmo se um dia eu deixar o Proerd, continuar nessa área de educação, pois percebi que é a minha vocação.