“Ser geriatra representa exercer a medicina com olhar de humanidade”

Autor da coluna DignaIdade, publicada aos domingos neste diário há 20 anos, o médico e professor ainda é colecionador de filmes clássicos, gibis e trilhas sonoras de novelas

- GABRIEL BUOSI

Data 23/02/2019
Horário 12:05
 José Reis - José Eduardo iniciou os trabalhos na geriatria em 1996 e comenta sobre sua trajetória
José Reis - José Eduardo iniciou os trabalhos na geriatria em 1996 e comenta sobre sua trajetória

O cuidado e a preocupação para com os idosos são os lemas básicos de vida do geriatra José Eduardo Pinheiro – algo possível de se notar logo nos primeiros minutos de conversa. O que hoje vai longe de ser apenas uma profissão, no entanto, não era no início da vida acadêmica o futuro que ele imaginava ter, já que, conforme o médico responde na entrevista abaixo, o amor pela escrita e outros fatores o fez titubear em determinado momento sobre a carreira de jornalista – o que o faria um excelente repórter, por exemplo, pela capacidade de enxergar o próximo com o olhar humano.

A carreira do especialista é recheada de informações que motivam as pessoas que estão ao redor a pensarem se a atenção, o cuidado e o carinho com o público da terceira idade estão ocorrendo de maneira respeitosa de nossa parte, e revelam que principalmente nesta fase é que a vida merece e requer ainda mais atenção e dedicação daqueles que, muitas vezes, os deixam de lado por causa da correria do dia a dia.

Além da medicina, José Eduardo tem algumas paixões que possivelmente poucas pessoas sabem: coleções de filmes clássicos, gibis, trilhas sonoras de novelas e o prazer pela escrita sobre assuntos que rodeiam a terceira idade em O Imparcial para a coluna semanal, aos domingos, denominada de DignaIdade e que completa em março 20 anos de história. Abaixo você acompanha a trajetória do geriatra, os momentos que marcaram a carreira e curiosidades sobre períodos de transição entre a vida pessoal e a vida do profissional de 50 anos, formado em 1992 pela UEL (Universidade Estadual Paulista) e especialista na área desde 1996.

O Imparcial: De onde surgiu o interesse pela medicina?

José Eduardo: A medicina em si, na verdade, a gente escolhe de uma forma impulsiva ou até por informação de outras pessoas, porque, muitas vezes, quando você toma a decisão de seguir uma carreira, você é tão jovem e tão inexperiente, que não necessariamente escolhe algo por uma verdadeira vontade. Acredito que a escolha da medicina foi impulsiva, na época, e não tão consciente naquele momento, mas eu me descobri apaixonado pelo curso ao longo do seu decorrer, então, acredito que tive sorte de escolher algo que durante a realização eu acabei me encontrando. Penso que tenho um perfil adequado para essa profissão.

E como a geriatria entrou na sua vida?

Foi ao longo do curso. Na verdade, na época da minha graduação não existia geriatria como disciplina de formação. O que pude observar é que eu gostava de lidar com idosos das diferentes especialidades, como cardiologia, reumatologia e pneumologia, por exemplo, gostava de atender as pessoas de mais idade, então, percebi que não somente gostava, mas que tinha empatia e interação com eles, além de observar que isso me diferenciava das demais pessoas que, às vezes, tinham pouca paciência com esse público. Com o passar do tempo, vi que gostava de todas as especialidades, então, eu não queria ser um clínico sem uma área específica, e nem especialista de uma área só. Assim, decidi enveredar para a geriatria, por ter um pouco dos dois. Ela tem a visão ampla da medicina e é uma especialidade que necessita de formação e te faz atender uma área específica.

Quais são as habilidades que um geriatra precisa ter ou desenvolver?

O profissional, para lidar com os idosos, apresenta naturalmente algumas características. A consulta com eles é diferenciada no seu tempo, pois ele se expressa de uma forma mais lenta e você também precisa ter um diálogo mais pausado, então, ocorre em uma velocidade reduzida. O médico precisa também cuidar de um paciente cujo fator clínico-físico e emoção estão muito ligados.

Acaba criando um vínculo com cada paciente?

Acredito que os vínculos e a empatia devem existir naturalmente em cada uma das especialidades. O idoso acaba tendo uma possibilidade de interação maior, pois o contato com o médico é também maior por causa de suas intercorrências. É possível ter uma proximidade grande, pois existe uma troca de afeto que talvez em demais especialidades que sejam mais rápidas a pessoa não tenha. A gente acaba cuidando do idoso por décadas, enquanto outros profissionais cuidam de pessoas por queixas e que podem ser solucionadas de forma breve. O idoso está sempre conosco e ele permite uma aproximação.

Esse contato traz receio por estar lidando com o fim da vida?

É importante entender que o geriatra vai vivenciar a morte de todos os seus pacientes, enquanto em outras especialidades a pessoa passa pela sua vida, como o pediatra, por exemplo, que cria a pessoa para a vida e os demais que lidam com particularidades. Eu, enquanto geriatra, vou cuidar com a morte de todos. Essa é uma verdade que existe dentro de nós. É natural que o receio da morte se traduza nessa maior intimidade, mas não ficamos amortecidos com isso, temos um olhar diferente sobre a finitude. Não me preocupo com o momento da partida, mas com o fato de que a vida precisa ter qualidade. O preparo para a morte não é o foco, mas fazer com que essa vida seja recheada de coisas boas.

Ao longo de sua experiência como profissional, diria que a medicina para idosos teve avanços?

A medicina como um todo é evolutiva e ainda mais na geriatria, que é uma ciência praticamente nova. Outro fator importante é que o fenômeno do envelhecimento populacional é recente e esse conjunto de informações técnicas se renova em qualquer área e principalmente na minha. Várias doenças crônicas degenerativas que antes não tinham tratamentos, hoje são esboçadas cada vez mais possibilidades e alívio de sintomas, então, a geriatria te exige uma necessidade de informação muito mais acentuada por ser uma ciência que exige tal informação.

Esse envelhecimento populacional vai demandar mais profissionais na área?

Isso já existe, pois o idoso já faz parte da população brasileira. Então, isso mostra que se tem muita gente acima de 60 anos e esse processo não ocorre da noite para o dia.

Quais os lados negativos da profissão?

Enquanto especialidade médica para o profissional que se forma, digo que existe um preconceito com a geriatria, pois muitas pessoas associam a especialidade apenas ao tratamento de doenças de idosos e isso ainda existe muito, o que bloqueia tal acesso. Outra coisa que ocorre é que a pessoa precisa estar preparada para lidar com o idoso, em um tipo de medicina que deve trazer satisfação para você, pois outras áreas podem trazer satisfação financeira muito maior. Eu, por exemplo, atendo um número bem menor de pacientes por dia, por ser um público específico e que já acompanho há anos. Há especialidades que possuem um ritmo mais acentuado e com procedimentos que auxiliam para essa maior velocidade. Então, do ponto de vista financeiro, pode não fazer muitas pessoas felizes.

Como você definiria a geriatria?

É um sacerdócio para mim. É exercer a medicina com um olhar de humanidade e isso não torna alguém especial, pelo contrário. Me permite uma interação e troca de sabedorias que são vivenciadas em épocas que eu não vivi e que me são passadas em pequenas gotas diárias, e isso vai me enriquecendo a cada dia.

Existe algum sonho profissional?

Eu me encontro em um processo de realização diária. O meu grande sonho é permanecer fazendo o que gosto, então, é continuar com duas coisas que amo: ser geriatra e fazer com que essa medicina possa ser vivenciada por outras pessoas, que é a docência. Hoje eu consigo mesclar as duas coisas, e ser professor para mim é prazeroso e as duas coisas se complementam. Ser professor me faz ter linguagens diferentes.

Teve alguma história que te marcou ao longo da carreira?

São inúmeras, talvez pensar isoladamente não significa que o grau do momento seja especial. Eu fico muito grato com a gratidão dos pacientes para comigo, isso é muito especial. A gratidão por parte desse público é muito mais evidente, pelo conhecimento do que você oferece e por vir de uma era diferente. A gratidão vem com muito mais intensidade, então, são momentos que me deixam emocionados. Duas são as situações simbólicas que posso mencionar. A primeira é usar o pediatra de exemplo, que é médico de criança, tão amado, que quando essa pessoa cresce e tem filhos, leva essas novas crianças para o mesmo médico. No meu caso, eu cuido dos idosos e sou amado pelos filhos, e eles voltam no futuro para cuidar do próprio envelhecimento e isso me é gratificante, pois mostra que o familiar conseguiu entender o processo de envelhecimento e buscou qualidade de vida. Essa situação é algo que posso mencionar como marcante.

Além da medicina, sabemos que há duas paixões na sua vida: ser colecionador e escrever textos. O que veio primeiro?

Penso que isso vem embolado e desde sempre. Fui uma criança colecionadora de algumas coisas específicas. A minha primeira coleção e que me encantei e trago até hoje é a de histórias em quadrinhos. Você ser criança nos anos 70 era não ter demais mídias que se tem hoje, então, não existia vídeo, computador e a leitura era muito importante e os quadrinhos me divertiam. Desde então coleciono, mas hoje não tenho quase tempo de lê-los, mas mantenho como objetos valiosos e sentimentais. Conforme fui me desenvolvendo, percebo que tenho uma visão cultural com avidez e não tenho vergonha de ser simples e popular, eu me acho popular. Por isso, sempre gostei de música popular e uma pessoa que via novelas e gostava de revistas sem serem aquelas informativas. Então, eu me desenvolvi culturalmente e tudo isso com muito prazer. Desde sempre gostei de TV, cinema e música.

Qual sua relação com essas coleções e demais paixões?

Trago até hoje todas essas paixões. Gosto de teledramaturgia e cinema clássico americano, dos anos 30 aos anos 60, que foi a fase dos grandes estúdios e estrelas. Na época, fui gravando filmes que eu era apaixonado em VHS, e quando vieram os DVDs, os transformei para o novo formato, então, hoje tenho minha coleção de DVDs antigos e muitos nunca nem foram lançados neste formato e isso se transformou em uma relíquia muito grande e que tem um valor pessoal enorme. De gibis devo ter algo em torno de 5 mil, e filmes devo ter algo em torno de 2 mil. Talvez se parasse de viver hoje para ver todos eles, não teria mais tempo, mas gosto de rememorá-los. Há ainda uma terceira coleção, que é de trilhas sonoras de novelas e hoje tenho todas e digo mais, até hoje compro as novas que vão saindo. São produtos que foram lançados em emissoras como Globo e a extinta Tupi. Na maior parte das vezes eu nem ouço, mas continuo comprando, até por uma questão de colecionismo eu continuo com a tradição. Até mesmo os gibis, tenho o primeiro da Turma da Mônica de 1970, e eu compro até hoje, todos os meses, mesmo não lendo, é mais pelo valor sentimental e de colecionador.

E o gosto pela escrita, como surgiu?

Como garoto tímido era mais fácil escrever do que verbalizar. Não me tornei um adulto introspectivo, mas tive facilidade de escrever sempre. Ao longo da adolescência ganhei concursos de redação e fiquei dividido entre Jornalismo e Medicina, mas sempre gostei de escrever. Tanto que eu ia às aulas e capturava aquilo e tinha que transformar o conteúdo em textos meus, então, eu funcionava com uma esponja dos professores.

E a coluna no jornal O Imparcial, como é este trabalho e como surgiu?

Na vida adulta me surgiu a oportunidade de participar da coluna, que faz 20 anos em março, e que escrevo semanalmente. Na época eu era presidente do Conselho Municipal do Idoso, e isso representava uma parceria para fazer uma divulgação das atividades envolvendo os idosos e que tomou corpo. Escrevo coisas que eu gosto e de situações que vivencio, sempre relacionadas com o envelhecer, não apenas de saúde, mas sobre características emocionais também. São textos para momentos de nostalgia ou para contato de jovens, para que tenham acesso ao passado. Busco valorizar o passado, mas de forma que ele construa o presente, não para viver naquela melancolia. E foi ocorrendo naturalmente.

Publicidade

Veja também