A falta da rua

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 16/08/2020
Horário 04:50

O longo período de distanciamento social imposto pela pandemia da Covid-19 reforçou o processo de fragmentação da cidade e de esvaziamento da rua como espaço de socialização. Para quem procurou manter-se em isolamento social, fez muita falta a convivência com os vizinhos e a participação em manifestações políticas e culturais das mais diversas realizadas nos espaços públicos. 
Cresci brincando na rua. Como a mudança para São Paulo foi um marco na minha vida, lembro-me de situações em Uberlândia quando tinha menos de 5 anos de idade! Naquela época criança pequena não ia para escola. Aprendia brincando na rua. E nós éramos da “pá virada”. Eu caminhava pelo muro do vizinho, me equilibrando como no circo. Nós saíamos no meio da chuva e perseguíamos nossos barcos improvisados de gravetos pela enxurrada. Como era bom brincar na rua! 
Minha juventude também foi na rua. Tempos de muita liberdade: shows em praças públicas, teatro de rua, passeatas... Ah! A campanha Diretas Já!  Milhões de pessoas nas ruas...
Nenhuma rua de São Paulo me marcou mais do que a Rua Capri, no bairro de Pinheiros. Trata-se de um ponto da cidade de encontro de vários tempos. Tempo lento da vida de quem mora ali há décadas, desde a época que o Rio Pinheiros era o fim da cidade e suas casas, um lugar numa curva do rio. Tempo cíclico da natureza modificada pelo homem, que aterrou a curva do rio e sobre a antiga calha fluvial construiu a rua. Tempo rápido da metrópole. 
A Rua Capri pertenceu ao meu cotidiano por anos, quando na década de 1980 trabalhei numa escola vizinha de dona Lourdes. Conheci essa simpática paulistana quando o colégio mudou-se para o final da Rua Capri, na divisa de muro de sua residência. Na escola nem havia ainda a cozinha e os alunos não haviam chegado, mas lá já estava a dona Lourdes, com seu sorriso hospitaleiro, oferecendo seu delicioso café para os funcionários que organizavam o colégio. Ela preencheu uma ficha de emprego e foi contratada como inspetora de alunos. Foi nesta função que ela veio a se aposentar há alguns anos.  
Dona Lourdes me fez lembrar Cora Coralina e sua luta para preservar suas relações com os vizinhos, considerados como os parentes mais próximos. Goiás instituiu o Dia do Vizinho para homenagear a sua grande poetisa. Neste momento de dor e tristeza, a gente sente falta do olhar mais próximo do vizinho. Quero mandar um caloroso abraço para nossos vizinhos, deixando aberta a esperança de um espaço cotidiano mais solidário e fraterno. 
 

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