Ela é só uma menina. Eu a vi pelo vidro do passageiro do carro. Ela brincava e estava com as mãos erguidas para cima, como se conseguisse tocar em algo imaginário. Quem sabe fosse um brinquedo, uma boneca, uma nova realidade.
Ela é só uma menina e não sei onde ela foi dormir naquela noite. Um dia que estava frio, chuvoso. Onde será que dormiu? Será que se esquentou? Com quantas pessoas dividiu um colchão?
Ela é só uma menina que um dia foi dormir em casa e acordou em meio a um transporte improvisado, atravessando uma fronteira.
Ela é só uma menina e para se alimentar havia ao lado dela um pacote de bolacha aberto. Uma bolacha dessas de água e sal. Sem graça, mas ao mesmo tempo suficiente e necessária. Para todo o dia? Não sei?
Ela é só uma menina e os carros passavam jogando por cima dela poeira e fumaça. Não era nem notada e para dizer a verdade, se fosse também os rostos virariam logo. Alguns para não sofrer, outros para reafirmar a tese de que não deveriam estar ali. E uns poucos, mas infelizmente reais, para dizer em alto e bom som que é merecido.
Ela é só uma menina e os sonhos se vão ao longo da manhã. Se é que existem porque ninguém sonha acordado. A fome, o frio, o sol, ou a dor não combinam com sonhos porque trazem para mais perto de todos nós a realidade nua e crua.
Ela é só uma menina e será um dia uma pessoa ou uma estatística? Será que haverá educação, namorados, convívio, uma casa, um quarto e coisas materiais que teve um dia e no outro não mais?
Ela é só uma menina e a sombrinha cobre seu rosto. Depois da chuva vem o sol e ele queima. Ela se distrai com o desenho. Tenta reconstruir no imaginário aquele unicórnio. Será que existem? A vida seria melhor se pudesse viajar em um deles.
Ela é só uma menina e enquanto seus pais seguram cartazes, ela tem nas mãos uma verdade bem mais nítida: o mundo não é justo com todos. E por qual razão? Por que ela não é mais humana que todas estas pessoas dentro de seus carros reluzentes?
Ela é só uma menina imigrante venezuelana e está aí nas esquinas e nos semáforos da cidade.
E quem é você nesta hora?
