Memorializar

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 08/11/2020
Horário 04:30

No momento em que escrevo minha crônica semanal, lembro-me da tragédia que levou o Brasil a perder o Museu Nacional, que foi destruído por um terrível incêndio há pouco mais de dois anos. Um acervo de obras raras e documentos históricos de inestimável valor foi transformado em cinzas. Verdadeiras relíquias da história simplesmente desapareceram: o crânio de Luzia - o mais antigo registro humano das Américas; o esqueleto do Maxakalisaurus topai, o maior dinossauro montado que existia na América; cadernos de campo do etnólogo alemão Curt Nimuendajú, com dados de 40 anos de pesquisas nas comunidades indígenas do país. Enfim, a maior perda histórica do Brasil! E pior do que tudo isso, o incêndio caiu no esquecimento, o que cabe indagar: qual é o sentido de memorializar?

Ao debruçar-me sobre esta questão, tive como referência Marilena Chauí. É ela que nos ensina que memorializar é uma luta social na qual vários elementos entram em jogo: o lugar que cada um ocupa, a rede de significados tecida pelos diversos atores, os laços de solidariedade e as forças de tensão entre os indivíduos. Enfim, o ato de memorializar é uma espécie de trabalho daqueles que não se calam diante da história do vencedor e dos que sufocam as lembranças das pessoas. Sejamos guardiões da memória coletiva!

Mas como temos sido enquanto memorialista? É incrível como nossa relação com a memória muda no decorrer do tempo. Quando criança, eu vivia num estado permanente de ações corriqueiras e pensava que tinha todo o tempo do mundo. Viver era um eterno presente do indicativo, no qual a narrativa discorre quase simultaneamente ao existir.  Na juventude eu me dava o direito de errar. Afinal, viver era uma tênue fronteira entre o futuro do presente - aquele que deve ocorrer subitamente ao fato e antes de outro ato futuro; e o futuro do pretérito, que enuncia o que poderia ter sido posteriormente ao verdadeiramente ocorrido. E agora, nesse processo multidimensional de me transformar num sexagenário, a memória começa a se reorganizar novamente. Percebo que me aproximo de um novo ciclo da vida. Não tenho mais todo o tempo do mundo. E, por isso, sinto a necessidade de ir direto ao ponto, mais essência e sensibilidade. É o do tempo dos verbos intransitivos, cujas experiências têm sentido completas e não precisam de complementos.

Salve Ricardo Reis! Segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas. O resto é a sombra de árvores alheias. (Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa)

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