Cotidiano

Em novo livro, Marcelo Gleiser explora incertezas da visão científica

  • 09/07/2019 11:30
  • REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Na curta lista de cientistas brasileiros que se comportam como intelectuais públicos, o físico carioca Marcelo Gleiser, 60, ocupa lugar de destaque. Com os ensaios reunidos em seu mais recente livro, ele procura deixar de lado o manto de mero advogado da ciência e se propõe a enxergar as complexidades e incertezas da visão científica do mundo. Não, Gleiser não se bandeou para o Lado Esotérico da Força nem está oferecendo sessões de "coaching quântico" ou coisa que o valha, apesar do sabor vagamente bicho-grilo do título de sua nova obra, "O Caldeirão Azul". O que acontece é que, seguindo uma trilha já aberta em seus livros anteriores, o pesquisador do Dartmouth College, nos Estados Unidos, usa sua considerável habilidade literária para desconstruir a ideia de que a ciência seria capaz de produzir uma visão completa, definitiva e imutável da realidade. "Agnóstico radical" talvez seja a definição mais adequada (e apropriadamente paradoxal) do autor dos ensaios --alguém que celebra a precisão e elegância do método científico, mas que, ao mesmo tempo, aponta suas limitações filosóficas, práticas e éticas. Gleiser também se mostra, ademais, um pluralista, atento a aspectos da experiência humana que não se prestam com tanta facilidade à investigação racional, e ao potencial de reverência e abertura ao mistério que corresponde a boa parte do fascínio da própria ciência. Tais assuntos predominam na primeira parte de "O Caldeirão Azul", coletânea que reúne textos originalmente publicados nesta Folha e em publicações americanas, como o site da National Public Radio e a revista Orbiter. "O tema que conecta todos os meus escritos é simples: vejo a ciência como produto da nossa capacidade de nos maravilhar com o mundo a cada vez que nos engajamos com o mistério da criação. Na sua essência, encontramos o mesmo ímpeto que move o espírito religioso", escreve ele no prólogo do livro. Essa perspectiva provavelmente ajudou o físico brasileiro a vencer a edição deste ano do Prêmio Templeton, principal láurea internacional dedicada ao diálogo entre ciência e espiritualidade. (Marcelo Gleiser já colocou em prática o que prega participando de um debate amistoso com figuras como o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho de Cultura.) Os ensaios mais reveladores e originais, no entanto, são aqueles nos quais Gleiser investe contra visões que se tornaram, ao menos para algumas pessoas, dogmas não oficiais da ciência. Ele desmonta metodicamente, por exemplo, a ideia de que seria possível chegar a uma "teoria de tudo" que unificasse todos os fundamentos da estrutura do Universo. Em primeiro lugar, aponta o físico carioca, os níveis de explicação científica que valem para, digamos, o mundo das partículas subatômicas não são aplicáveis de forma direta aos seres vivos ou a estruturas maiores. Conforme transitamos de um nível para outro, propriedades insuspeitas emergem. Além disso, nada garante que a busca por elegância e simplicidade matemáticas que guiou muitos físicos até os dias de hoje não seja, no fundo, preconceito humano, a tentativa de impor ao Universo algo que só existe como estrutura mental do Homo sapiens. Talvez o Cosmos não seja tão simétrico e ordenado assim ou, como sugere Gleiser, talvez a tensão entre simetria e desordem é que seja a responsável por tornar a realidade tão especial. Essa mesma ambição totalizadora talvez esteja por trás da crença "científica" na inexistência do livre-arbítrio (afinal, se regras estritas determinam todos os eventos do Universo, não haveria, no fundo, escolha alguma) ou no sonho de alcançar a imortalidade ou de criar máquinas com inteligência muito superior à humana. Gleiser volta seu ceticismo contra essas perspectivas, que sugerem uma mistura curiosa de impotência e desejo de onipotência, apontando que ainda estamos muito distantes de compreender a natureza da mente e da consciência humanas. Simulá-las ou superá-las, portanto, ainda está longe de ser um futuro inevitável. Faz mais sentido celebrar e proteger o milagre improvável da consciência humana como a conhecemos, com todas as imperfeições que ela carrega. O Caldeirão Azul: O Universo, O Homem e Seu Espírito Autor: Marcelo Gleiser; Editora Record; R$ 36 (ebook); 224 págs;