Política

Promotoria ignorou eventuais adulterações no sistema de portaria

  • 31/10/2019 21:47
  • ANA LUIZA ALBUQUERQUE E ITALO NOGUEIRA
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - A perícia feita pelo Ministério Público do Rio de Janeiro nas gravações da portaria do condomínio do presidente Jair Bolsonaro (PSL) não avaliou a possibilidade de algum arquivo ter sido apagado ou renomeado antes de ser entregue às autoridades, aponta documento apresentado à Justiça. Foi com base nessa análise que a Promotoria classificou como falsa a menção ao presidente feita pelo porteiro do condomínio. Para promotoras do caso, foi o policial militar aposentado Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco (PSOL), quem autorizou a entrada de Élcio Queiroz, ex-policial militar também envolvido no crime. Documento entregue à Justiça mostra ainda que as bases da perícia foram feitas a toque de caixa na quarta (30), antes da entrevista sobre o caso. O Ministério Público disse em nota que o objetivo da perícia era apenas instruir a ação penal contra os acusados de matar a vereadora, provando o encontro dos dois réus. A Promotoria afirma que aguarda autorização do STF (Supremo Tribunal Federal) para seguir com a investigação que apura o mandante do crime, procedimento no qual o nome do presidente foi citado. Reportagem do Jornal Nacional de terça (29) apontou que um porteiro (cujo nome não foi revelado) deu depoimento dizendo que, no dia da morte de Marielle, em 14 de março de 2018, Élcio Queiroz afirmou na portaria do condomínio que iria à casa de Bolsonaro, na época deputado federal. Pelo depoimento do porteiro apresentado pela emissora, ao interfonar para a casa de Bolsonaro, um homem com a mesma voz do presidente atendeu e autorizou a entrada. O suspeito, no entanto, foi a outra casa do condomínio. O funcionário relatou ter interfonado uma segunda vez para a casa de Bolsonaro e que foi atendido pela mesma pessoa, que afirmou saber que a casa 66 era o destino do visitante. A planilha manuscrita de controle de visitantes, apreendida no dia 5 de outubro, registra a entrada de Élcio para a casa 58, do presidente. Nesta quarta, a promotora Simone Sibilio afirmou que a investigação teve acesso à planilha da portaria e às gravações do interfone e que ficou comprovado que a informação do porteiro não procede. Segundo a Promotoria, há registro de interfone para a casa 65 e a entrada de Élcio foi autorizada pelo morador do imóvel, Ronnie Lessa. A mídia com a gravação foi entregue à Polícia Civil no dia 7 de outubro pelo síndico do condomínio. Nela constavam arquivos referentes a janeiro, fevereiro e março de 2018. A entrega ocorreu dois dias após policiais terem feito busca e apreensão no condomínio em busca da planilha de controle de entrada de visitantes. No mesmo dia 7, o porteiro foi ouvido --ele foi reinterrogado dois dias depois, reafirmando o relato inicial. O único objetivo da análise nos arquivos entregues pelo síndico foi confirmar se é de Ronnie Lessa a voz que autoriza a entrada de Élcio Queiroz. Os peritos usaram como base de comparação o interrogatório do PM aposentado dado à Justiça no dia 4 de outubro. Os questionamentos das promotoras aos peritos não incluem a possibilidade de algum arquivo ter sido apagado ou renomeado. O nome do arquivo indica qual casa recebeu a ligação da portaria --o que apresenta o anúncio de Élcio a Lessa tem o trecho B65. O documento também indica que os técnicos não tiveram acesso ao computador de onde os dados foram retirados. Para o presidente da Associação Brasileira de Criminalística, Leandro Cerqueira, sem acesso à máquina onde os arquivos foram gravados não é possível saber se um arquivo foi apagado ou renomeado. "A edição pura e simples, se cortou alguma coisa, dá pra fazer [apenas com a cópia]. O arquivo pode não estar editado, mas pode ter sido trocado. Tem 'n' coisas que aí não é a perícia no áudio, é a perícia da informática. Para ver se não foi alterada a data ou qualquer outra coisa nesse sentido, tem que ter acesso ao equipamento original. A perícia vai lá, faz um espelho, e pericia o espelho, para garantir a idoneidade da prova." A perícia também foi criticada pela Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais. "É temerário o possível arquivamento de uma notícia de fato sem que tenha havido a solicitação do devido exame pericial oficial. Isso abre espaço para que tome conta do debate uma guerra de versões e opiniões, distantes da materialidade dos fatos", afirma a nota do presidente da associação, Marcos Camargo. Os papéis da Justiça apontam ainda que as promotoras só enviaram nesta quarta ao setor técnico as questões a serem respondidas sobre as gravações. O Ministério Público declara ter tido acesso aos arquivos no dia 15 de outubro e não ser possível confirmar se a gravação é do mesmo porteiro que prestou depoimento. Os autos da Justiça também não fazem menção a arquivos do circuito interno de TV para corroborar a versão de que Élcio entrou apenas uma vez no local naquele dia. As promotoras julgaram que a perícia é suficiente para considerar falsa a declaração de que o acusado teve a entrada liberada por uma pessoa que estava na casa de Bolsonaro. A Promotoria não citou hipóteses que possam explicar por que houve anotação incorreta do número da casa, bem como os depoimentos do porteiro. Disse que isso pode ter ocorrido por vários motivos, que serão apurados. A planilha só se tornou alvo da investigação em outubro quando peritos conseguiram acessar dados do celular de Lessa. O aparelho foi apreendido em março, no dia da prisão, mas estava bloqueado por senhas. Ao conseguir desbloquear o celular, os investigadores notaram que a mulher de Lessa enviou em janeiro para o marido uma foto da planilha de entrada do condomínio que indicava acesso à casa 58. O envio foi feito em 22 de janeiro, dois dias antes de Lessa e Queiroz serem ouvidos na Delegacia de Homicídios sobre o assassinato --na ocasião, eles estavam soltos, ainda sob investigação. Em interrogatório na Justiça, no dia 4, Lessa confirmou ter se encontrado com Élcio em sua casa, o que também motivou o pedido de busca e apreensão. Com base nesses indício, a polícia realizou a busca e apreensão dos documentos no dia 5 de outubro. O Ministério Público afirmou em nota que "a perícia objetivou o confronto da voz entre o interlocutor que atendeu a chamada da portaria com a voz do acusado Ronnie Lessa, na intenção de confirmar com mais um elemento o elo entre os denunciados junto à ação penal em andamento". "Até naquele momento, os denunciados omitiram que estivesses juntos no dia do crime. A perícia apresentada complementou a ação penal em curso, auxiliando no estabelecimento da conexão entre os réus", afirma a nota da Promotoria. O órgão afirma ainda que há, em paralelo, uma investigação em curso para apurar quem é o mandante do assassinato da vereadora, que aguarda autorização do STF para prosseguir. É nesse procedimento que o nome de Bolsonaro foi citado. O Ministério Público afirma ainda que não há, 17 meses após o crime, imagens de circuito interno do condomínio disponíveis. Declarou também que a perícia teve acesso ao material já no dia 15. A promotoria afirma que na quarta (30) houve somente a formalização dos questionamentos. O advogado Fernando Santana, que defende Elaine Lessa, declarou que sua cliente nunca foi questionada sobre a mensagem mencionada pelas promotoras. Ele afirmou que ela não enviou tal arquivo para o marido.