Cotidiano

Doria pagou R$ 242 milhões antecipados por respiradores chineses atrasados

  • 26/05/2020 13:10
  • ARTUR RODRIGUES E ROGÉRIO PAGNAN
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Sem garantia contratual, a gestão João Doria (PSDB) pagou US$ 44 milhões (mais de R$ 242 milhões) antecipadamente por respiradores pulmonares da China cuja entrega deveria ter sido iniciada em abril. Até agora, apenas 50 equipamentos de 3.000 contratados chegaram a São Paulo, em momento em que as vagas de UTI começam a ficar em níveis críticos no estado. Documentos obtidos com exclusividade pela reportagem reconstroem a saga dos respiradores, que incluiu o "sumiço" de equipamentos, mudança de rota com fretamento de avião e até pedido de ajuda divina. "Que Deus nos ajude a todos", escreveu em email o empresário Basile Pantazis quando encaminhou ao governo paulista os dados para o depósito do adiantamento de 30% do valor da compra, para prosseguimento da operações de importação da China. Conforme o jornal Folha de S.Paulo revelou, a gestão Doria contratou em 23 de abril a empresa Hichens Harrison & Co., com operação nos EUA e sócios brasileiros do escritório no Rio, para intermediar a compra de 3.000 respiradores pulmonares de fabricantes chineses, no valor total de US$ 100 milhões --mais de R$ 550 milhões. A compra incluía dois modelos de respirador: um deles é o ICU Ventilator SH300, da estatal chinesa Ethernity; o outro, o AX-400, da também chinesa Comen, que é um ventilador de anestesia. O primeiro equipamento custou US$ 40 mil (R$ 220 mil) a unidade, valor considerado acima do mercado e que provocou a abertura de investigações por parte do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Estado. Os órgãos também apuram a falta de garantias no contrato e as ligações entre responsáveis pelo contrato e integrantes do governo. Pelos documentos obtidos pela reportagem, a empresa se comprometeu a entregar rapidamente os aparelhos. O primeiro lote de 500 equipamentos chegaria a São Paulo na semana seguinte à assinatura do contrato; toda a compra estaria disponível ao governo até meados de junho. A rapidez na entrega foi a justificativa do governo de SP para pagar valor superior ao de outras propostas apresentadas: a pressa poderia salvar vidas. Os contratos revelam ainda que a empresa encaminhou documentos que atestavam o embarque de 500 equipamentos ao Brasil. Por isso, segundo a empresa, era necessário o depósito de outros US$ 14 milhões (cerca de R$ 77 milhões), o que foi feito. Como esses 500 equipamentos não chegaram, o governo paulista passou a cobrar a empresa. Em determinado momento, ela afirmou desconhecer onde estavam os equipamentos. "Não sabemos se a carga saiu da alfândega chinesa, muito menos se foi desembarcada em Nova York conforme previa o plano original de voo", diz resposta assinada pelo presidente da empresa, Peter Leite, no dia 8 de maio. Um dos focos da investigação do Ministério Público é saber qual é o papel de Basile Pantazis, autor do email ao governo paulista com a rogativa a Deus, que atuou como consultor comercial no negócio. O nome do empresário já apareceu em investigações, entre elas ligado a empresa investigada pela Promotoria do Paraná por suspeitas de fraude em edital relacionado ao Detran. Nos anos 2000, ele era tesoureiro do PTB e próximo do então senador Gim Argello, preso em 2016 em uma das fases da Lava Jato. Segundo a lei, compras da administração pública devem seguir requisitos como o pagamento após o recebimento de produtos e também a exigência de garantias. Ao longo do processo interno do governo, pareceres da Procuradoria do Estado sustentaram a excepcionalidade da situação. Durante a pandemia, as fabricantes chinesas só têm atuado com produtos 100% pagos e têm sido disputadas por compradores do mundo todo. As exceções se justificam, segundo os pareceres, devido à impossibilidade de obter os produtos de outra forma. Os pareceres internos dizem que o pagamento antecipado é possível desde que a situação seja justificada e "com a adoção de cautelas para mitigar os riscos decorrentes de eventual inexecução contratual". Apesar da falta de garantias da compra, segundo o governo diz em documento, a empresa, "na hipótese de não entrega, total ou parcial, dos respiradores", é obrigada a devolver "o valor proporcional do preço já pago (US$ 44 milhões), além de multa de 10% sobre o saldo devido". Para o Ministério Público, sem as garantias contratuais, se a empresa se negar a devolver o dinheiro, a situação do governo de SP se complica muito. O transporte dos equipamentos incluiu o fretamento de voo e desencontros. Isso se deve a uma regra imposta pelo governo chinês, permitindo voos com apenas 150 equipamentos por vez, e também à escassez de voos para este fim. A Hichens fretou um avião da Azul para trazer 133 respiradores, com passagem por Amsterdã, onde estariam no momento. A reportagem teve acesso a supostas imagens dos equipamentos sendo transportados pela empresa. Os primeiros equipamentos deveriam ter sido enviados no dia 29 de abril e todos deveriam chegar até 27 de maio. Ao saber do atraso, o governo de SP enviou nota à empresa afirmando que o problema poderia causar aumento de óbitos e colapso do sistema de saúde, além de obrigar o governo à compra de equipamentos mais caros. Um lote de 50 mesas de anestesia, que serão usadas como respiradores, chegou ao país via Etiópia. Outra parte está em trânsito. Após o atraso, o governo Doria repactuou a compra para incluir só os US$ 44 milhões já pagos. Segundo o vice-governador, Rodrigo Garcia (DEM), houve repactuação para a entrega de 1.280 aparelhos (com valor médio unitário de US$ 34 mil), que é a quantidade que a empresa contratada conseguirá entregar até junho. Há ainda 1.000 aparelhos, comprados de outra empresa, que virão via Londres, pelo valor de US$ 20 milhões (valor médio unitário de US$ 20 mil). Uma terceira compra do governo, na indústria nacional, custou US$ 2,5 milhões (US$ 10 mil cada aparelho). O governo diz que os valores diferentes se devem às diferenças entre os modelos de respirador. Governo afirma que contrato prevê multa e devolução da verba OUTRO LADO Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado da Saúde informou ter adquirido 1.280 respiradores chineses junto à empresa Hichens. O pedido original de 3.000 equipamentos foi repactuado e teve como premissa básica a entrega até meados de junho. "Para salvar a vida dos pacientes que não têm esse tempo para esperar, o Estado decidiu agir. Tanto que as entregas do lote de 1.280 respiradores já começaram a acontecer e os primeiros equipamentos começaram a ser distribuídos por hospitais da capital do estado." Ainda segundo nota da gestão Doria, o contrato firmado junto à Hichens prevê a devolução do dinheiro e multa de 10% sobre o valor, caso haja descumprimento das cláusulas. Por fim, a gestão Doria diz que os contatos para a aquisição dos produtos foram feitos por meio de Fabiano Kempfer, vice de operações e responsável pelo escritório da empresa no Brasil. "Já Basile Pantazins é um representante comercial da Hichens no Brasil." Já a Hitchens, também em nota, diz que os cronogramas de envio de máquinas produzidas na China "estão sujeitos a alterações por causa da excepcionalidade causada pela pandemia de Covid-19". Segundo a empresa, a outra fabricante, Shenzen Comen, "já entregou 50 aparelhos de anestesia do modelo AX-400". "Mais dois lotes de 50 máquinas estão em procedimento de embarque no Aeroporto Internacional de Guangzhou com destino ao Brasil, via Etiópia." A empresa diz que pode "afirmar que todo o lote adquirido pelo governo de São Paulo será entregue até o final de junho". "O contrato está vigente, em execução e será cumprido integralmente." Sobre Pantazis, ela diz que ele foi o consultor comercial. Já o empresário diz que atua como "commercial advisor" da Hichens Harrison & Co. no Brasil apenas no segmento de respiradores, tendo experiência de mais de 25 anos no comércio China-Brasil. Ainda segundo a nota, Pantazis diz que tem participação "meramente societária" da empresa investigada no Paraná, "sem função diretiva, administrativa ou consultiva na estrutura de uma empresa de tecnologia". "Importante ressaltar que se trata de uma empresa regular, que opera nacionalmente com regras rígidas de compliance, e que tem colaborado com investigações que atingem diversas empresas que atuam no mesmo setor, tendo obtido resultados bastante positivos no âmbito judicial." Ele diz que, apesar de manter residência e familiares no Brasil, ele vive desde 2017 no exterior boa parte do tempo, e não tem mais relação com atividades políticas ou filiações partidárias. "Somente ocupou por breve período a executiva local do PTB no DF, tendo se desfiliado em 2011."