"Vi que servir a Deus era mesmo pra mim"

​​​​​​​São 44 anos de idade e pelo menos 25 deles destinados à vida religiosa, sobretudo, a cuidar do próximo

- THIAGO MORELLO

Data 19/05/2018
Horário 10:21
Marcio Oliveira - No dia 30, Irmã Cecília celebrou 25 anos dos votos; dentro da rotina, ela lembra que um dos momentos mais sagrados é o da oração
Marcio Oliveira - No dia 30, Irmã Cecília celebrou 25 anos dos votos; dentro da rotina, ela lembra que um dos momentos mais sagrados é o da oração

São 44 anos de idade e pelo menos 25 deles destinados à vida religiosa, sobretudo, a cuidar do próximo. A madre Carmen Cecília Moncada nasceu na pequena cidade de Cucuta, na Bolívia, próximo à fronteira com a Venezuela. Até os 14 anos de idade, ela não tinha a ideia, ou pelo menos a confirmação, de que a partir de então, sua vida seguiria uma doutrina totalmente diferente da esperada e até mesmo imaginada pela família.

A mesma incerteza também não lhe fazia pensar que 30 anos depois, estaria no Brasil, mais precisamente em Presidente Prudente. Hoje, a colombiana e madre - que pertence à ordem Irmãzinhas dos Anciãos Desamparados - convive com os cerca de 80 idosos do Lar São Rafael, dedicada a realizar aquilo para qual foi predestinada: servir a Deus e cuidar do próximo. A título de curiosidade, tal congregação nasceu em Valência, na Espanha, há 147 anos, por meio da Nossa Senhora dos Desamparados.

Mas antes mesmo de chegar à capital da Alta Sorocabana, Carmen, mais conhecida como Irmã Cecília, trabalhou em lares do próprio país de origem, além da Argentina e Chile. No Brasil, ainda esteve em Santa Catarina e em São Caetano do Sul (SP). Contudo, ela não deixa de dizer que a atual cidade em que reside é um dos locais que mais gostou de visitar, se não o primeiro da lista. Ainda segundo ela, todo o calor alto - no que tange ao clima - traduz no calor humano do povo brasileiro.

Em uma entrevista exclusiva para o jornal O Imparcial, Irmã Cecília compartilhou um pouco de sua história, de como foi escolher tal estilo de vida há 25 anos e, mais que tudo, viver diante dos hábitos religiosos restritos e se dedicar a não uma só vida (a dela mesmo), mas a de outras centenas de pessoas que conheceu.

 

O Imparcial: Madre, antes de tudo, como foi o processo de escolha e aceitação da vida religiosa, que, anos depois, te encaminhou ao Brasil?

Irmã Cecília: Bom, eu tenho uma irmã que também é religiosa e ela entrou primeiro que eu no convento. A mim, ela falava muito das irmãzinhas que convivia no lar. Certa vez, pela curiosidade, fui a esse local que ela ficava e, por lá, eu vi que também tinham outras meninas que se preparavam para serem freiras. Eram entre 15 e 20 meninas. Elas, assim como minha irmã, estudavam na parte da manhã e, de tarde, ajudavam nas coisas do lar. Assim, elas se preparavam para a missão, pelo menos aquelas que queriam entrar para a congregação. Em uma dessas visitas, as madres me perguntavam se eu não gostaria de seguir o mesmo caminho. Eu, com apenas 12 anos, pensava que talvez seria bom, mas me achava muito nova e dizia ‘não’. Aos poucos, a ideia foi permanecendo em minha cabeça e fui amadurecendo. Minha tia, também muito religiosa, falava com meus pais e começou a tomar mais força com o assunto. Já com 14 anos, uma hora eu decidi e falei: “Eu quero”. Meus pais deixaram sem nenhum problema e então comecei a rotina. Nas férias da escola, eu ficava com as irmãs. Quando no período de aulas, de manhã eu estudava e de tarde ajudava as irmãs, até os 16 anos. E aí depois disso, dessa experiência, eu decidi que realmente gostaria de ser irmã. Eu vi a falta que os idosos sentiam de carinho, o trabalho das irmãs como era bom, e me senti tocada. Eu percebi que eu também queria fazer algo assim. A ideia de saber que faria algo bom me fez feliz. Vi como elas trabalhavam, ia à missa, ajudava os idosos a irem para a igreja, enfim, me encantei e fui à formação. Foi de forma voluntária. Pensei: “Vou seguir, vou para frente e fazer meus votos”. São nove anos de formação e depois que completamos, durante seis anos, todo ano temos que renovar, é uma espécie de teste, mas vi que servir a Deus era mesmo pra mim. Depois desse período, vêm os votos perpétuos e também os votos de obediência. Esse último ele faz com que você fique à mercê de sua superiora. Para onde ela te encaminhar, você deve ir. E foi assim que começou minha jornada: primeiro fui para a Argentina, depois quatro anos no Chile e, agora, seis anos no Brasil, que foi uma vinda ordenada. Não imaginava que os planos de Deus me enviariam até aqui.

 

E como funciona todo o processo de preparação até que os votos sejam feitos?

São nove anos de formação. Primeiro a gente passa por uma época de postulantado e depois noviciado. Nesses anos, nós ficamos rezando, mais que tudo. O processo ocorre em um lar de formação, onde houver noviças e que tenham ligação com a congregação, e aí seguem-se as disciplinas. Além da formação religiosa, também aprendemos sobre as constituições, a história da congregação, no entanto, o ensinamento, mais que tudo, é espiritual. Com o tempo, a gente entra na missão e fica com os idosos. Cozinha, enfermaria, administração, enfim, tudo. A madre organiza as tarefas de forma que há um rodízio, para termos conhecimentos de todas as atividades. Também aprendemos conhecimentos de enfermagens, pois é necessário, o que também nos faz enfermeiras. Além de tudo, estudamos a gerontologia, que é o estudo integrado dos idosos.

 

É uma vida totalmente destinada a viver pelo próximo. O que mais lhe motiva neste trabalho?

O que mais me motiva é o amor a Deus. Eu costumo falar que faço oração para que ele mantenha em mim essa disponibilidade para o outro e o amor a ele acima de tudo. Trabalhamos por amor ao Senhor e por meio dele temos a paz. Na vida religiosa, não falta nada. Não tenho propriedades porque a congregação nos concede o necessário. Não tenho bens materiais, apenas os hábitos. A fidelidade de Deus é o que me motiva. E a gente quando faz o bem fica feliz. Nós irmãs ajudamos os outros e nem sempre conseguimos tudo, mas a intenção é o que vale. Hoje em dia eu acho que sempre tem pessoas, mesmo que não religiosas, que queiram fazer o bem. São pessoas tocadas e que buscam a fazer o bem, assim como o contrário também, infelizmente, existe. Quem nasceu do bem faz o bem e quem nasceu do mal torna-se um pouco egoísta, materialista e pensa somente nas coisas desse mundo. O mundo seria diferente se todos ajudassem e cada um fizesse a sua parte. Às vezes não fazer o mal já é fazer o bem. Fazer a minha parte é o que me motiva.

 

Para quem não conhece, como é a rotina de uma freira?

Como existem muitas congregações, também existem muitas formações: catequese, ensino, cuidados com idosos e etc. A congregação a qual pertenço é destinada ao cuidado dos idosos. Aqui, na maior parte do tempo, a nossa entrega é para cuidar deles, mas envolve muitas coisas. Aqui também lidamos com os benfeitores, aqueles que passam por aqui e querem ajudar. Eles vêm até aqui, se sensibilizam com o trabalho com os idosos. Os testemunhos que damos para as pessoas de fora também são rotineiros. A gente reza bastante, reza Salmos, porque é desta forma que conseguimos forças e as graças. A hora de oração é de intimidade com Deus. Cada um tem sua missão, né. Mas cuidamos, acima de tudo, dos outros.

 

Dentro do Lar São Rafael, como é a sua relação com os idosos?

A relação com os idosos é muito boa. Eles são queridos. Quando me eles me veem, já falam: “Olha a madre chegando” [risos]. Às vezes brincamos juntos, e isso dá um pouco de alegria para ambos os lados. Sorrimos e convivemos aqui como uma família, todos os funcionários. Eles motivam os idosos e os idosos os motivam. É muito gratificante. É melhor dar do que receber.

 

Da forma como descreve, a convivência se torna agradável. No entanto, como é o processo de aceitação dos próprios idosos e o convívio com as famílias?

Algumas famílias que estão lá fora são difíceis, porque não correspondem. Existem os casos em que as famílias simplesmente nos entregam aqui, como se quisessem dizer: “Se viram”, outros se preocupam um pouquinho, e outros correspondem, vêm até aqui e ajudam, dão carinho. Mas alguns também não têm ninguém mesmo. Na maioria das vezes, eles se adaptam rápido, mas há outros que ficam no portão e falando que precisam ir embora, porque a família/esposo (a)/filhos estão esperando. Tem um tempo de aceitação, mas eles se acostumam. O que eu percebo é que com o tempo, o idoso é acostumado a ter seu próprio cantinho. A gente pode ver isso em tudo: no lugar de rezar da capela, na mesa de comida, na sala de estar, refeitório... Eles vão e ficam no mesmo lugar. Procuramos manter o cantinho deles como uma forma de ajudar a maioria a se adaptar bem. Mas tem casos em que eles não conseguem, não querem vir e estão lúcidos, aí eles retornam para a família depois de tentarem a adaptação.

 

São 25 anos de formação, mas pelo menos 28 desde que surgiu o seu primeiro contato com um lar. De lá prá cá, qual história que te marcou?

Eu tenho uma na Colômbia, assim que comecei a missão. Aos 21 anos, já em formação, no lar em que eu estava, tinha um idoso, seu Salvador, que era evangélico. Mas ele ia à missa todas as vezes, mesmo sendo evangélico. Um dia eu perguntei para ele: “O senhor é evangélico e gosta de ir à missa?”. Aí ele virou e me disse: “Sim, porque é o mesmo Deus”. Foi uma reposta de sabedoria. Com o tempo, Salvador ficou doente. Nós temos uma rotina quando os idosos ficam bem doentinhos e perguntei se ele queria que chamássemos o padre. Ele disse não, que queria o pastor da comunidade. Assim fizemos, e o pessoal da igreja foi até lá, todo o pessoal. Mas ele continuou doente e não queria ir para o hospital. Ele dizia que queria morrer em casa. Eu falava que não, que era melhor ir se cuidar. Nós chamamos um médico, que deixou ele no lar mesmo, com um soro, pois já estava bem debilitado. E então, para nossa surpresa, ele quis ver o padre e pediu para o sacerdote: “Eu quero que o senhor ore por mim também. E quando morrer, não quero que façam missa, pois quero uma oração agora”. Aí o padre disse que tudo bem, ia orar por ele e tudo ia ficar bem. Rezou com ele. No lar, toda noite passamos para ver como estão os idosos, mesmo que estejam sob os cuidados dos enfermeiros. Eu fiquei acompanhando ele, e ele segurou minha mão e disse que ia embora hoje. Decidi ficar com ele. Quando deu perto da meia-noite, ele insistiu e me disse que ia morrer daqui a pouco, sendo assim, pediu para que não colocasse nada no caixão dele, que chamasse apenas o pastor. Eu disse não, pois Deus é quem sabe quando vamos morrer, e que era para ele descansar. Mas ele me confrontou e respondeu: “Não, essa noite eu vou embora”. Pois bem, o relógio passou das 0h, e ele faleceu. Eu chorei muito naquele momento, porque era a primeira vez que ficava diante de uma cena assim, diante da morte, e ele era muito bonzinho [emocionada]. Ele me marcou pelo modo como ele sentiu que não ia mais viver. Ele implorava para não levá-lo ao hospital. Isso ficou bem marcado [limpando as lágrimas].

 

Olhando lá pra trás, pensando naquela garotinha de 14 anos, tendo o primeiro contato com a vocação, você acredita que hoje tudo valeu a pena ou já pensou desistir alguma vez?

Voltando àquela menina, eu posso dizer que nunca pensei em desistir, mas pensava que não ia dar conta. Porém, no outro dia tudo se renovava. Na maioria das vezes, sempre vi que o que eu fazia era bom e a rotina que eu ia adotar era para uma vida de servir e se dedicar a Deus. Meus pais também rezavam muito o Evangelho comigo, principalmente um texto do livro de Mateus, que fala da nossa vocação para ser discípulo de Deus. Sentia saudades, mas não era algo que me prendia, passava. Hoje, anos depois, tenho certeza que valeu a pena. A fundadora falava para nós que as irmãzinhas tinham que cuidar bem dos idosos, para que eles lá no céu possam interceder por nós e abrir as portas para quando formos. Então, eu sei que lá no céu, tenho muitos intercessores. É um desafio, mas todo mundo tem que lutar. Jesus também passou pela cruz, e como ele, cada um tem a sua. Temos que chegar lá, no resultado esperado, cada um com seu objetivo.

 

Desde muito nova a senhora teve influências familiares que te ajudaram a seguir a vocação. Às meninas que não possuem isso, qual a sua mensagem?

Eu gostaria de fazer um apelo: caso haja alguma menina que se sinta tocada, tenha alguma dúvida e queira conhecer o lar, as irmãs e os idosos, pode vir até aqui conosco. Pode ser uma experiência boa, algo que possa aflorar. Existem muitos casos em que até mesmo as idosas que convivemos contam que gostariam de ser freiras, mas não tinham ninguém que poderia tê-las ajudado. Ou os pais não deixaram ou faltou algo durante a vida, são muitos testemunhos. Passar por essa experiência pode ser algo bom, quando se sente tocada. Hoje em dia sabemos que o mundo está muito difícil e confuso, mas queremos e estamos aqui para ajudar.

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