“A intolerância faz com que a nossa existência seja uma resistência”

Conheça um pouco da trajetória do fundador da Casassa, uma casa de acolhimento LGBT fundada em julho de 2017, em Prudente

- SANDRA PRATA

Data 08/12/2018
Horário 09:48
José Reis - Derick, junto de Julían, fundou a entidade com o propósito de ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade
José Reis - Derick, junto de Julían, fundou a entidade com o propósito de ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade

Essa história começa com dois jovens, um brasileiro e outro colombiano. O cenário é a 2ª Semana da Diversidade Sexual de Presidente Prudente e o propósito é criar uma entidade que acolha pessoas LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis) em situações de vulnerabilidade. Foi assim que Derick Moraes Sanches, 27 anos, e Julían Medina Naranjo, 35 anos, fundaram a Casassa (Casa de Acolhimento LGBT), em julho de 2017.  O objetivo era apresentar uma alternativa, “um respiro” para aqueles que, de alguma forma, se sentiam excluídos pela orientação sexual e identidade de gênero.

Casassa. O aumentativo no nome denota intensidade e grandiosidade de algo que, segundo Derick, é mesmo grande. No entanto, isso nada tem a ver com o espaço físico, já que aparentemente se trata de uma edícula localizada no Jardim Paulista com um dormitório, duas salas e cozinha. Todavia, leva esse nome devido ao espaço acolhedor que, conforme explica, pode ser definido como “um grande abraço”. Aconchego esse que já acolheu aproximadamente 10 pessoas e aconselhou outras tantas no decorrer de um ano e cinco meses de existência. Hoje, o espaço, de paredes de madeira colorida, é cenário de aulas de inglês aos sábados, oficinas e, às vezes, de bazares colaborativos e eventos para fins de complemento de renda mensal, que se mantém totalmente fundamentada em doações e colaboração de parceiros e voluntários.

Além disso, o centro recebe no máximo três pessoas por um período estimado de três meses e promove um direcionamento desses indivíduos à inserção social e reconstrução de laços, familiares e de convívio. Conheça um pouco da história de Derick. Natural de Presidente Bernardes e formado em Arquitetura e Urbanismo, hoje, além de exercer a profissão e administrar um bazar online, desenvolve trabalhos voluntários na entidade que ajudou a idealizar e levar em frente. Em entrevista a O Imparcial, ele fala um pouco sobre a realidade vivida pela instituição e os desafios diários dessa iniciativa.

O Imparcial: De onde partiu a motivação para a criação da Casassa? Como deram os primeiros passos?

Derick: Tudo começou quando eu e o Julían percebemos que nos eventos, às vezes, tinham rodas de conversa e as pessoas LGBTs sempre relatavam suas aflições, problemas e depois disso voltavam para casa e pronto. Não existia uma ajuda, uma continuação, uma ação que, de fato, tentasse reverter a situação. Foi com isso que pensamos “poxa, a gente poderia fazer algo que desse essa continuidade e de alguma forma acolhesse essas pessoas”. Concordamos então em criar um grupo no Facebook com o nome “Casassa” para ver se a ideia realmente teria adeptos. No fim do dia, o grupo já tinha mais de mil membros, então, pensamos que era algo interessante. Marcamos uma reunião com os interessados e, aos poucos, fomos filtrando até juntar o pessoal do grupo administrativo hoje. Daí o Julían soube da casa que estava para alugar, viu o valor, e disse que se todo mundo topasse poderíamos fazer acontecer, e aconteceu.

Percebi que aqui vocês possuem uma equipe com muitas pessoas para a organização da Casassa. Como funciona a administração? Existe alguma separação?

Hoje temos uma equipe em torno de 10 a 12 pessoas voluntárias, mas fazemos reuniões mensais e damos abertura para novas pessoas participar. Com isso, nos dividimos em GTs (grupos de trabalho) e cada GT possui alguém que coordena determinado campo. Por exemplo, temos um GT responsável pelo acolhimento, que é um grupo de psicólogos que conversa com os acolhidos, temos o GT responsável pela divulgação da Casassa nas redes sociais. Temos outro que fica responsável pelo financeiro, pela organização dos eventos. A divisão é feita para melhorar a organização, mas, no fim, todos trabalhamos pelo mesmo objetivo.

Como chegam até aos acolhidos ou como eles podem chegar até a Casassa?

Normalmente eles entram em contato por alguma rede social, telefone, ou via alguém que conhece nosso serviço. Então, conversamos com essa pessoa, entendemos a história e ela passa por uma entrevista com psicólogos que vão direcionar para a melhor opção. Já tivemos casos de que realmente o acolhimento fosse necessário, mas, às vezes, o problema pode ser resolvido antes que seja preciso ficar na Casassa. Aqui nós funcionamos como se fosse uma casa de passagem, então, não temos moradores fixos. É como se fosse uma casa emergencial que acolhe pessoas em situação de vulnerabilidade, seja por expulsão da casa onde vivem ou por não conseguirem se adequar ao ambiente nos quais estão inseridos. Estipulamos um prazo de três meses para que a pessoa comece a pensar no que vai fazer, quais caminhos vai trilhar. Para isso, damos todo o suporte com uma equipe de psicólogos, que entrevista e conversa com essas pessoas, a fim de apresentar opções que mais encaixem com o perfil de cada um. Acreditamos que a partir do momento que a pessoa tem uma boa alimentação, um local onde pode dormir tranquila, tomar um banho, a cabeça dela vai poder focar em outros objetivos. Então, isso que fazemos aqui, oferecemos o básico para que a pessoa se acalme, respire, sinta que não está sozinha e possa, tranquilamente, pensar melhor no que fazer.

E quanto à estrutura da casa? Como é a rotina? Quais os serviços oferecidos?

A casa foi ganhando forma aos poucos, de julho a outubro de 2017 fomos estruturando com os móveis, a pintura das paredes. Tudo na base do voluntariado e da colaboração de alguns coletivos, entre eles, o Coletivo Mãos Negras e o Levante Popular da Juventude. Hoje temos um dormitório com três camas, uma sala de convivência, uma sala de reuniões, cozinha e banheiro. Temos curso de inglês gratuito aos sábados e pretendemos, em breve, começar com oficinas de jardinagem. Mas tudo depende das pessoas que estão acolhidas e das possibilidades, já tivemos aulas de música, porque tivemos um acolhido que tinha esse viés musical, então, sempre tentamos oferecer coisas que se adequem ao perfil dos acolhidos.

Quanto custa para que a entidade exista? Sobre as contas com aluguel, alimentação, quais são as alternativas para manter?

Pagamos R$ 350 de aluguel, mais alimentação e contas, pode colocar uns R$ 120. A base da nossa renda são doações e eventos, todo mês fazemos um bazar, uma noite musical, uma festa temática, sempre estamos inventando algo para conseguir levantar esse dinheiro. A gente se esforça para que seja o suficiente e sempre conseguimos suprir, porém, como eu disse, nunca passamos um mês sem fazer algum evento para arrecadar isso. O ideal seria que não precisássemos, porque acabamos ficando focados demais na promoção de eventos para conseguir manter a casa, deixando a questão do acolhimento em segundo plano. Então, talvez, se tivéssemos um apoio e uma forma de equilibrar as finanças, não teríamos tanto que nos preocupar com isso, poderíamos focar mais nas pessoas que estão acolhidas aqui.

Como avalia o assunto de acolhimento LGBT e a discussão social sobre o tema e sobre a própria Casassa?

O ideal mesmo é que a Casassa nem precisasse existir e a sociedade estivesse com o coração e o peito aberto para compreender que os LGBTs são pessoas normais e comuns. Se existisse diálogo sobre esse assunto já seria um avanço. Porém, as pessoas tendem a se fechar quando o assunto são LGBTs, então, buscar uma solução prévia é utópica. O que podemos observar é que não existe interesse em ajudar de fato, a não ser que exista uma troca e que se ganhe alguma coisa com isso. O preconceito é um grande entrave, porque é diferente divulgar “ah, temos uma casa que acolhe pessoas em situação de rua”, isso é bem mais aceito do que dizer que acolhemos LGBTs que, às vezes, foram expulsos de casa. Já tivemos experiências de pedir ajuda em entidades da cidade e, chegando lá, fomos tão questionados sobre o assunto e a repulsa foi tão grande que tivemos que nos afastar. Também ouvimos relatos de amigos, conhecidos, que sentem dificuldade no acesso até mesmo de serviços básicos de saúde e assistência, apenas por serem LGBTs.

Pensando um pouco nas pessoas acolhidas, quais são os perfis e razões mais comuns que resultam na chegada delas na entidade? 

Cada pessoa traz uma história consigo e todas elas, de alguma forma, têm particularidades. Mas, no geral, os casos de exclusão do núcleo familiar são muito doloridos, porque essas famílias que excluem, normalmente, têm vínculo muito forte com alguma religião e falta diálogo. Aí que entramos e tentamos fazer com que a pessoa acolhida entenda que, muitas vezes, família não é necessariamente a biológica, mas é a que ama, que acolhe e te dá aquele abraço. Mas tem um caso específico que recebemos, uma acolhida que veio do Rio de Janeiro e ela fez metade do percurso até Prudente a pé e pedindo carona. Foi comovente, porque ela tinha todos os problemas de não conseguir ser aceita, mas, mesmo assim, na Casassa, fazia de tudo para nós, os administradores, nos sentirmos bem, fazia comida, tinha esse instinto materno e faltava esse afago que a entidade proporcionou a ela.

Em relação a essa situação de exclusão familiar, como vê esse tipo de situação e o que acredita que sejam os fatores que a ocasionam?

Em minha opinião, é a falta de informação e, ao mesmo tempo, um bombardeiro de informações. A pessoa não é informada o suficiente para entender que os LGBTs têm sentimentos normais, mas o tempo todo são informadas de coisas que as fazem desacreditar que se tratam de seres humanos. Essas informações distorcidas incentivam a intolerância e acabam fazendo com que a nossa existência seja uma resistência. Ser reconhecida como pessoa se torna algo cada vez mais difícil hoje.

É comum que as pessoas acolhidas tenham esperança de se reconectarem com os laços familiares ou sociais? Como a Casassa atua para contribuir com isso?

Sim. Em muitos casos que atendemos aqui, a pessoa mantém essa ideia de precisar de uma ligação com a família biológica. Porque querendo ou não é um choque perder tudo aquilo que você tinha vivido até o momento e ter que recomeçar. Mas também temos pessoas que não possuem essa vontade, que compreendem que a família não precisa ser de sangue, mas sim quem acolhe. Nossa pretensão enquanto Casassa é primeiramente fazer essa reconexão e, mesmo que a pessoa não volte a morar na casa dos pais, volte a ter uma relação com a família. Isso diminui os traumas que essa pessoa terá que lidar na vida e quanto menos traumas ela levar para vida melhor vai ser.

De que forma o suporte prestado pela entidade pode contribuir para a qualidade de vida e construção cidadã dessas pessoas?

Penso que ser acolhido é um momento de respiro, é a sensação que a pessoa precisa ter de que não está sozinha e que a realidade é difícil, mas ela tem alguém para ajudar a superar. É preciso essa ajuda para voltar a se alinhar com a vida, é um verdadeiro abraço que diz “estamos aqui, calma, come, tome um banho, tudo vai dar certo”.

Pensando no trajeto até aqui e no que está por vir, quais são os planos futuros?

Bom, acredito que 2019 e os próximos anos serão bem difíceis para o público LGBT e para as entidades. Espero que não, quero pensar que não, mas vamos ver. Pensando nisso, nossa pretensão é ir para um espaço maior para poder acolher mais pessoas. Além disso, como mencionei, nosso maior problema atualmente é dedicar muito tempo na promoção de eventos para manter a casa, então, acho que um dos nossos objetivos é criar uma forma de fazer algo que faça o lado econômico da casa funcionar e que possamos nos dedicar ainda mais nas questões do acolhimento.

No geral, hoje, o que fica para sua consciência, ver que o projeto tomou forma e existe?

Acho que o contato com tantas histórias, tantas vidas diferentes, te faz refletir e pensar que, muitas vezes, seus problemas, coisas que você enaltece e acha que são horríveis, se tornam pequenos ao serem comparados com os problemas de outras pessoas. Esse comparativo e essa sensação de que existe um projeto que pode ajudar essas pessoas com os problemas delas, te dão força para ajudar e para solucionar seus próprios problemas. 

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