Cotidiano

Sandro Villar

O Espadachim, um cronista do tempo em que toda donzela tinha um pai que era uma fera

CRÔNICA - Sandro Villar

Data 14/12/2023
Horário 05:30

Como em toda cidade o comércio da cidadezinha também funcionava dentro do que se convencionou chamar de horário comercial. As lojas e outros estabelecimentos atendiam os clientes a partir das 8h. A freguesia fazia as compras até às seis da tarde. Depois desse horário, quando o serviço de alto-falante apresentava a Hora do Angelus saudando Nossa Senhora, apenas os bares ficavam abertos.
O Abel era dono de uma quitanda e, como é óbvio, vendia frutas, verduras e legumes. Abria a quitanda sempre às oito horas. Fã dos antigos gibis da Ebal (Editora Brasil-América), ele mantinha algumas publicações. Para quem gostava de faroeste era um prato cheio. "Lembro-me de um freguês que só ia à quitanda para ler gibis. Ele leu um gibi do Durango Kid pelo menos dez vezes", contou o então quitandeiro.
O tempo passou, Abel foi policial militar, seguindo o caminho de seu pai, o cabo Evaristo, e também atuou na Polícia Civil. Não sei se exerceu as funções de investigador ou de delegado. Grande sujeito o Abel, que deixou sua marca na cidadezinha.
Ao lado da quitanda, funcionava uma alfaiataria. Era a alfaiataria do Waldemar. Com cabelo à la Tony Curtis, um dos maiores galãs de Hollywood, o alfaiate se vestia bem. Andava na maior estica. Uma vez se envolveu em uma briga e, com uma faca, furou um morador, que foi atingido no, digamos, traseiro. Caso rumoroso numa cidade pequena.
Como em todo lugar, a cidadezinha também tinha seus tipos folclóricos, como os barbeiros Aristeu e Seu Toninho. Aristeu era chegado na água que urubu não bebe. As más línguas diziam que ele só trabalhava "calibrado". Uma vez o Otávio foi fazer a barba no salão do Aristeu e saiu correndo de lá.
Depois de colocar o avental branco no cliente, o Aristeu encheu de espuma a barba cerrada do Otávio e, navalha em punho, começou a fazer a barba do freguês. Começou e não terminou o serviço. Em vez de começar de leve, na altura do meio do ouvido, o barbeiro foi direto até o queixo do Otávio. Foi uma raspada só de navalha. Assustado, o cliente saltou da cadeira e foi para a rua com o avental e metade da barba por fazer. Apesar do incidente, os dois mantiveram a longa amizade.
Mais comedido do que o Aristeu, o Seu Toninho tinha uma boa freguesia. Que eu saiba, ele não bebia e nem frequentava bares e botecos. Sempre que terminava um corte de cabelo ou raspava barba, o Seu Toninho perguntava ao cliente: "Não ficou bacaninha?" Sim, Seu Toninho, ficava bacaninha o seu trabalho.   
Um homem nanico, quase anão, tinha o costume de "discursar" no centro da cidadezinha. Não sei se fazia isso bêbado. Era conhecido pelo apelido Tiãozinho Doido. Dizem que foi abandonado pela mulher e ficou fraco das ideias. Dor de amor. "Tô louco, tô louco, roubaram a minha mulher", dizia Tiãozinho, que misteriosamente desapareceu do lugarejo.
Também havia um lavrador que costumava beber nos botecos e armazéns de secos e molhados, onde também se mata a "sede". Ele chegava cedo. Depois de algumas doses de cachaça, voltava para o seu sítio nas imediações da cidadezinha. Um detalhe chamava a atenção: ele caminhava uns 200 metros, parava e olhava para a cidadezinha. Depois, andava mais um pouco, parava e repetia o gesto de olhar para o centro do lugarejo. 
Fazia isso várias vezes, sem falar, gritar ou sussurrar. Em seguida, voltava para casa. Onde eles estão? Só Deus sabe. Acho, no entanto, que eles faziam parte de uma civilização que o vento levou, se me permitem citar a escritora Margaret Mitchell, autora de "E o Vento Levou".

DROPS

Filme da Semana na Argentina: "El Loco", estrelando grande elenco cafona e fora do prumo.

Não há alemão no Complexo do Alemão.

Os fins justificam os e-mails.

Atenção, paulistas: preparem-se para pagar uma fortuna pelo precioso líquido. 

Publicidade

Veja também