“Fico fascinado em ver que meu trabalho ajudou na realização de alguém”

O empresário e personal trainer descobriu sua vocação para trabalhar com pessoas de necessidades especiais ainda na adolescência, e hoje é reconhecido por sua atuação com portadores da síndrome de Down

Marcio Oliveira - Anderson começou a trabalhar com pessoas com necessidades especiais ainda na adolescência
Marcio Oliveira - Anderson começou a trabalhar com pessoas com necessidades especiais ainda na adolescência

A vocação para trabalhar com pessoas de necessidades especiais começou logo na adolescência, mais precisamente aos 15 anos, quando o empresário e personal trainer, Anderson Soares Davino, 35 anos, começou a dar aulas de basquete na Escola Municipal Doutor João Franco de Godoy, Navio, em Presidente Prudente. E a iniciativa partiu dele mesmo, ao entrar em contato com a direção do colégio para pedir permissão para desenvolver alguma atividade no local. A experiência durou 7 anos, tempo em que também auxiliou no desenvolvimento motor de crianças especiais nas aulas, até que a vida tomou outros rumos. Naquela época, o profissional não imaginava que seguiria na área pelas próximas duas décadas de vivência, e que seria reconhecido pelo trabalho que desenvolve na cidade com idosos, pessoas com síndrome de Down, entre outras deficiências, que ele considera como “pacientes e amigos”.

Antes de estabelecer moradia em Prudente, Anderson percorreu diversas partes do Brasil durante muito tempo. Natural de Santos (SP), já morou em Belo Horizonte (MG), Vitória (ES) e Salvador (BA), tudo por conta do trabalho da mãe. Por considerar o interior de São Paulo uma região com mais tranquilidade para viver, a família resolveu ficar por aqui, onde o personal trainer pode construir a carreira que já vinha sendo desenvolvida há muitos anos. Enquanto cursava a faculdade de Educação Física, depois de já ter se graduado em Turismo, estagiou em duas academias, sendo a segunda a Set Fit, onde permanece até hoje. Devido à confiança que demonstrou ao chefe, ganhou estabilidade e foi convidado a ser um dos sócios do estabelecimento.

Como sentia a necessidade de investir em algo que lhe desse retorno, abraçou a causa e seguiu mais um passo na carreira. Mesmo com as dificuldades em conciliar os estudos com a vida profissional, Anderson não mediu esforços para continuar a desenvolver a função que teve lá na adolescência: a de trabalhar com pessoas de necessidades especiais, mais especificamente, com síndrome de Down. “Levo a filosofia de vida de que apenas os mais fortes sobrevivem, então, tento fazer o melhor possível aos alunos para que todos saiam satisfeitos e que possam retornar no dia seguinte por prazer, e não por mais um dia de treino. Existem pacientes que estão comigo há mais de 10 anos, e fico fascinado em ver que o meu trabalho ajudou na realização de alguém”.

O Imparcial: Desde a adolescência você já tinha contato com as aulas voltadas para pessoas especiais. O que foi preciso fazer para aprender a lidar com a síndrome de Down, que afeta seus principais pacientes, quando passou a auxiliar mais pessoas no ambiente profissional?

Anderson: Eu conhecia a síndrome de Down, porém, não sabia muitas coisas a respeito. Então, foi necessário buscar conhecimento por meio da leitura de artigos e textos na internet, que tiraram muitas dúvidas sobre o problema, além das formas de tratamento indicadas. Este foi um processo que considero um pouco difícil no começo, porque realmente não é simples lidar com as situações que surgem. Além do conhecimento que fui adquirindo, pude resgatar os ensinamentos de dois cursos de especialização que concluí depois que me formei em licenciatura e bacharel em Educação Física. Na sequência, me especializei em fisiologia do exercício, a fim de ter noção ampla do corpo humano e da locomoção, e também em prescrição de treinamento. Neste, eu fiquei apto a trabalhar com pessoas com quaisquer problemas ou deficiências.

Onde e como ocorrem os treinos?

Geralmente, todos os treinos ocorrem em locais abertos, porque não gosto de levar os meus alunos para treinar em ambiente fechado. Claro, tem exceções. Se estiver um dia muito chuvoso, calor intenso ou o sol estiver muito quente, os exercícios ocorrerão dentro da academia, ou até mesmo na residência do participante. Inclusive, tenho um aluno que se chama Luís Gabriel Camolez, ele tem 42 anos e estamos juntos há 10 anos. No condomínio onde mora são disponibilizadas quadras e parques para que as atividades sejam feitas, ou seja, está praticamente em casa. Além das atividades esportivas e prática de exercícios físicos diários, tiramos um tempo para levar a aula para dentro da água, mais especificamente em uma piscina. Sempre busco levar os diferentes tipos de atividades, ainda mais quando for uma área ampla, o que trará mais desenvolvimento ao aluno. Mas não deixo de observar as capacidades físicas de cada um para buscar a atividade adequada.

Quais os cuidados que são necessários levar em conta ao trabalhar a atividade física com as pessoas que tenham a síndrome de Down?

Antes de dar início à aula, o primeiro passo é que o aluno seja submetido a uma avaliação física para que eu conheça as limitações que ele tem. Conforme os meus estudos, entendo que todas as pessoas com síndrome tomam algum tipo de medicamento, então, procuro saber quais são eles e entender os problemas de saúde. O que é bastante frequente nos alunos são os problemas cardíacos, alguns apresentando níveis mais elevados, o que requer cuidado, e outros, níveis mais baixos. Tenho observado que boa parte deles já começou o tratamento logo na infância, o que é positivo. No decorrer das aulas, busco demonstrar aos alunos que eu sou amigo, e considero isso muito importante. Quanto mais forte o interesse na amizade, a pessoa começa a se abrir mais e contar sobre o que sente, ou seja, o trabalho vai além da atividade física. Não é porque eles têm a síndrome que estão livres de problemas, muito pelo contrário. Talvez não seja da mesma grandiosidade que o nosso, mas qualquer coisa para eles é intensa.

São praticamente duas décadas trabalhando com pessoas especiais. No decorrer deste período, de que forma a relação com os alunos contribuiu para o seu crescimento pessoal?

Observo que houve realização pessoal em todos os sentidos, sempre de maneira positiva. Durante o tempo de atuação pude aprender a compreender melhor a síndrome de Down, e aprender a lidar melhor com a minha paciência. Além disso, pude conhecer pessoas ao mesmo tempo em que tive que desenvolver a minha capacidade de lidar com as limitações que elas possuem. Isso sempre foi feito na base da conversação com meus alunos e, como cada um possui uma característica diferente, foi preciso mostrar aos demais que esses perfis devem ser respeitados. Tudo isso é questão de adaptação, e me ajudou bastante a trabalhar não só com os especiais, mas com pessoas de modo geral. Então, vejo que isso tudo só me trouxe coisas positivas.

Os familiares dos alunos procuram as suas aulas porque confiam em seu trabalho. Como você avalia a sua relação com os pais ou cuidadores?

Quem trabalha com pessoas deficientes necessita buscar uma aproximação com o aluno e, consequentemente, precisa entrar aos poucos na vida particular dele. Desta forma, conforme o tempo passa, acabo me tornando praticamente um membro da família. Tanto é que não tenho receio em chamar a atenção da pessoa se ela estiver fazendo algo desagradável, mesmo que seja na frente da mãe ou do pai. Isso ocorre por conta da relação de amizade que é construída ao longo das aulas. Em todas as residências sou muito bem recebido pelos familiares, e fico bastante feliz em ver que a minha aproximação com eles trouxe resultados satisfatórios. Diante da barreira que muitos profissionais enfrentam em trabalhar com a inclusão social, vejo que minha parte está sendo feita e, além da relação entre aluno e professor, crio o laço de amizade.

Como está o cenário de profissionais de educação física que desenvolvem trabalhos voltados para a inclusão social? Qual a expectativa para o desenvolvimento desta prática para os próximos anos?

Trabalho há quase 20 anos neste meio e nem sempre a inclusão social tinha tanta notoriedade quanto hoje, que passou a ser mais divulgada nos últimos 8 anos. Mas, também não podemos esquecer que, às vezes, o preconceito em fazer com que as pessoas especiais evitem a sociedade está dentro da própria casa. Mas a família não é culpada, uma vez que faz isso por receio de que do lado de fora seja vítima de discriminação por ser diferente.  Um exemplo de que este pensamento pode estar ficando para trás são as competições realizadas nos Jogos Paralímpicos, que têm inserido todos os tipos de deficiências de maneira inclusiva. Então, este assunto da inclusão está bastante forte, e os profissionais de educação física foram aderindo a atender este público, porém, é preciso sempre melhorar. A atividade física tira essas pessoas do sedentarismo, muitas vezes proporcionado por jogos tecnológicos, que é mais cômodo para os cuidadores, mas que inibem o convívio social. Isso precisa ser mudado, é importante mostrar que existem maneiras de se divertir na comunidade, seja em projeto social ou qualquer atividade que traga prazer.

Em sua opinião, quais as barreiras que as pessoas com síndrome de Down ou outras deficiências ainda encontram para praticar a atividade física? Seria esta uma forma de lazer fácil de ser colocada na rotina do aluno?

Atualmente, ainda existem familiares que cuidam dessas pessoas que não dão a atenção total que elas merecem, sendo que muitos as deixam “trancadas” dentro de casa como se fossem “bichos”. Desta forma, acabam não disponibilizando este tempo para colocá-las em uma escolinha de futebol, por exemplo, ou aulas de ginástica artística, natação, entre outras. Volto a reforçar que é possível observar o medo de incluir essas pessoas com outras da mesma idade por conta do receio de preconceito. Precisamos pensar que a inclusão social é o termo principal a ser levado em conta. Ninguém consegue chegar lá no topo sozinho, e são os familiares que darão o pontapé para que eles sigam em frente. Neste momento é preciso o total apoio da família, porque quanto maior a ajuda, melhor será o desenvolvimento mental, o que refletirá no futuro dele. Eu acredito muito nisso, que há chances de mudança. 

Em mais de uma década de contribuição para a saúde física de pessoas com síndrome de Down, foram muitas as situações pela quais já passou, sejam boas ou ruins. Há algum acontecimento que ficou marcado em sua memória?

Tem um caso interessante que me recordo com o Luís Gabriel. Tínhamos o costume de correr com saída do condomínio Central Park até as proximidades do Hospital e Maternidade Morumbi. E ele sempre foi do tipo que chegava nas meninas querendo abraço ou beijo. E eu olhava e o repreendia, dizendo que não deveria ser feito desta forma. Então, o ensinei a galantear. Disse para o Luís pegar uma flor, ir até a menina e perguntar o nome dela para puxar conversar. Foram passando os dias e ele começou a fazer isso, e quando a gente encontrava as mesmas mulheres no percurso da corrida ele fazia questão de pegar flores em um jardim e sair entregando. Eu nunca fiquei em cima, observava sempre de longe a atitude dele. Em alguns casos, o Luís até sentava para conversar, sempre elogiando as meninas. A gentileza e educação deste rapaz me deixam muito feliz, e mais ainda porque sei que pude contribuir para o desenvolvimento dele, não só como professor, mas também como amigo que me tornei.

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