Em meio à possibilidade de fechamento de polos do Projeto Guri na região de Presidente Prudente, o que deixaria alunos desassistidos e professores desempregados, e antes de o Estado anunciar a recuada da decisão, um depoimento na rede social Facebook chamou a atenção de moradores de Pirapozinho e das cidades vizinhas. Com um texto emocionante, o maestro, Maurício Andrade Dias, 26 anos, relatou sobre seu contato com o projeto, que ocorreu enquanto ainda morava em outra cidade da região, oportunidade em que ainda se mostrou contrário ao anúncio de fechamento dos polos.
“Me lembro como se fosse hoje, quando em minha cidade Martinópolis, vi um anúncio que ali teria um polo do Projeto Guri. Logo me interessei pelo que hoje traz o sustento de minha família, o saxofone, e tenho orgulho de falar que fui o primeiro aluno do instrumento desse polo, por sete anos maravilhosos. Só sai por conta da minha idade, pois já tinha ultrapassado o limite, e tive maravilhosos professores, que estavam dedicados em ensinar essa arte, a música, e que em mim veio a se misturar em meu DNA. Ali passei um dos melhores momentos de minha vida”.
Essa foi apenas parte do relato do ex-aluno que se viu na necessidade de usar a rede para alertar amigos, familiares e quem sabe autoridades para a “gravidade” da situação anunciada. O governo recuou na decisão. A reportagem conta a experiência de Maurício com o Projeto Guri, que comenta sobre a importância dessa aprendizagem na vida dos alunos. “Ele me tirou da rua e sei que, sem ele, minha vida teria outro rumo”.
O Imparcial: Como teve início o seu contato com a música?
Maurício: Na verdade esse meu contato com a música eu tive apenas em Martinópolis, pois eu vi um anúncio do Projeto Guri quando tinha aproximadamente 12 anos, convivia com alguns amigos que tocavam instrumentos e eu me interessei pela ideia.
Foi quando eu pedi para minha mãe, que entendeu que o projeto, que ainda era iniciante na cidade e uma novidade por lá, poderia ser uma boa escolha. Então, eu conheci a música através do Guri, que abriu diversas portas para mim.
Quais foram os instrumentos que você teve contato?
O primeiro instrumento que eu, de cara, me apaixonei e tive acesso foi o saxofone, algo que até então eu só via pela televisão. Tínhamos aulas de terça e quinta-feira, esses momentos ficam bem presentes na minha memória, pois o projeto fez parte da minha vida e marcou ela de uma forma única. Eu fiquei lá por sete anos.
O que o projeto representava para você?
Vou responder essa pergunta com um dado interessante e que é comprovado pelo Projeto Guri de Martinópolis. Em sete anos de atividade, eu faltei apenas duas vezes e por um motivo bem específico: Eu tinha apenas uma calça e que usava para ir à escola de manhã e para o projeto pela tarde. Nesses dois dias choveu e a água acabou molhando a minha calça. Como eu levava muito a sério e não gostava de ir de bermuda, acabei deixando de ir. Tenho amor pela música, então, via a necessidade de respeitar aquele momento. Costumo dizer que o Guri tira crianças da rua e eu fui uma delas, já que era para eu ter outra vida hoje dia.
Teve apoio da família ao longo do projeto?
Eu tive pais separados e minha mãe veio de uma situação de divórcio quando viemos da capital de São Paulo para o interior. Minha mãe foi uma daquelas que tinham que trabalhar o dia todo para sustentar a casa, e por me ver sempre pedindo para entrar no projeto, viu que poderia me apoiar nessa escolha.
Com algum tempo, depois que ela viu que a música começou a ficar séria na minha vida, confesso que vi nessa certa preocupação por um motivo: músicos não são valorizados no nosso país. Mas depois que ela viu a coisa caminhando e dando certo, ai sim ela ficou mais tranquila e me apoiou de fato.
E depois de tantos anos de experiência com o projeto, como o classificaria enquanto fomentador da cultura e da música?
Para mim, o Guri é um dos melhores e principais projetos que o Estado deveria investir, pois penso que, pela minha história, posso dizer que ele tirou uma criança da rua, que sou eu. Mas isso ocorre com muitos, não foi algo exclusivo meu.
Lá existe uma capacidade enorme de transformar a vida das pessoas, sendo bem sincero. São ótimos educadores e que não me ensinaram apenas música, mas a ser homem de caráter e responsável. Digo seguramente que a maioria das crianças que vão ao projeto é carente e que muitas vezes não tem oportunidade, por exemplo, de fazer uma faculdade no futuro, então essa pode ser a única chance delas entrarem em algo que vai mudar a vida. O projeto é uma peça fundamental, se de fato querem mudar a história desse Estado.
Houve alguma história marcante em sete anos de projeto?
Tenho uma muito legal. Tivemos, não me recordo exatamente o ano, um encontro de orquestras de vários polos da região, lá em Martinópolis, e nisso estava como convidado o maestro Alailton Assunção, ele trabalhava na emissora de TV, SBT, no quadro “Qual é a Musica”. Esse dia foi o ápice para mim, já que tive contato com muita gente, pessoas que compartilham do mesmo amor pela música e essa interação foi fantástica. Toquei o saxofone nesse dia e foi a melhor sensação do mundo. É indescritível, posso ficar aqui quatro horas tentando, e não vou conseguir transparecer essa emoção.
Como foi seu desligamento do Guri?
Foi o dia mais triste quando a coordenadora falou que eu não poderia mais fazer as aulas, aos 18 anos, por causa do limite de idade. Foi bem difícil, pois me imaginei saindo com 18 anos e um pouco perdido, e mesmo eu envolvido em algumas instituições religiosas, o contato que eu tinha ali era com uma orquestra e com algo que eu gostava. E foi quando eu pensei: o que farei agora?
Busquei me especializar e foi quando pensei em começar a levar o Projeto Guri para outras pessoas e lugares, e graças a Deus eu consegui.
Com o mesmo formato e objetivo, passei por algumas cidades e hoje estou residindo em Pirapozinho, onde temos 50 pessoas na orquestra da nossa Igreja. Mas, antes, passei por Martinópolis, Anhumas, Narandiba, Tarabai e hoje dou aulas aqui para levar a música a quem gosta, ama a e precisa.
Qual o contato que você tem hoje com a música?
Eu vivo e a respiro todos os dias. Hoje eu me especializo, faço cursos, que são necessários, e já tive a oportunidade de conhecer o piano clássico, o violoncelo, para conhecer a área das cordas, pois sei que eu preciso conhecer a teoria dos instrumentos, mesmo que na prática o maestro não precise saber tocar todas.
Hoje o contato prático está em realizar a profissão e nas aulas que dou de segunda a sexta-feira, na Igreja, em grupos pequenos de até sete pessoas, como ocorre no Guri, dividindo turmas por nível de conhecimento. Aos sábados realizamos o ensaio geral, e no domingo esse trabalho é executado e colocado em prática no nosso culto.
Como foi receber a notícia de que 19 polos do Guri, incluindo o de Pirapozinho, poderiam ser fechados?
Primeiro eu fiquei estarrecido, pois achei um absurdo. Ao ver isso pensei que parece sermos feitos de palhaço, dizendo como eleitor mesmo, pois como o Estado pode fechar tantos polos assim? Não existe isso. Por que não cortam verbas de outras áreas ou tira privilégios dos políticos ou qualquer outra coisa que não mexa na nossa cultura?
Muitas crianças muitas vezes não vão nem pela música, mas por saberem que lá serão assistidos com muito carinho e até terão comida, o que muitas vezes em casa não teriam. Não se pode tirar isso, por isso comecei com a militância nas redes sociais. Nossa classe da música é bem unida e não poderíamos deixar esse projeto acabar assim de uma hora para a outra.
Hoje [ontem] veio o anúncio de que as alterações não devem ocorrer mais. Ficou satisfeito com a medida?
Eu assisti a coletiva de imprensa e penso que eles se sentiram pressionados, já que a nossa mobilização foi fundamental para esse processo. Se não tivéssemos nos posicionado, digo os ex-alunos, alunos, professores e educadores, esse resultado poderia ter sido diferente. São muitas pessoas envolvidas nesse processo e estou satisfeito, pois entendo que elas vão continuar assistidas.
Por fim, como está hoje a música no nosso país e Estado? Acredita que atingiu o patamar que deveria estar?
Penso que ainda tem muito a mudar. A música no país é pouco valorizada pelo governo. Existem bandas marciais por aí que estão completamente sucateadas e sem investimentos para comprar instrumentos, por exemplo, o que dificulta manter o trabalho. Falta investimento nessa área e precisamos de mais atenção, sem dúvidas.