A exaustão dos lagos

OPINIÃO - Maurício Waldman

Data 27/03/2019
Horário 05:34

A crise hídrica assumiu tal dimensão que ninguém ousa colocar em cheque a seriedade do problema. Na questão climática, há quem coloque o fenômeno sob caução. Contudo, não existem negacionistas da crise da água. Isto porque o ronco das torneiras persegue já nos dias atuais parcela ponderável dos humanos. Note-se que o naco das águas doces na massa líquida total do Planeta soma 200 mil km³. Isto é: 0,014%-0,015% das águas globais. Caso toda água doce do mundo fosse um litro, tão só uma gota estaria fluindo pelos lagos e cursos d’água da Terra.

Por extensão, as águas próprias para consumo humano são raras. Mesmo assim, são maltratadas e vilipendiadas. Praticamente todo o santo dia, a mídia registra alguma nova calamidade relacionada ao líquido, no geral, acompanhada de imagens de rios poluídos, esgoto a céu aberto e enchentes. Mas quem fala a respeito dos lagos? O silêncio na hora de responder denuncia que provavelmente o assunto não consta na agenda cotidiana, asserção que não implica na irrelevância do tema ou que o destino dos lagos não seja da nossa conta.

Atente-se que embora cubram área 12 vezes menor do que os rios, estes corpos líquidos acumulam volume d’água 35 vezes maior do que os fluxos fluviais. Todavia, importância não implica em respeito. Obras naturais como os Grandes Lagos (EUA), e o Lago Baikal (Rússia), a despeito do vulto destes ambientes, que no primeiro caso concentra 27% da água das regiões lacustres do globo e no segundo, 25%, têm sido fortemente afetados pela poluição.

Além das cargas de efluentes e deposições ácidas, retiradas excessivas de água e intervenções desastrosas colaboram com seu quinhão na destruição dos lagos. O resultado são paisagens dignas dos filmes de ficção, e dentre as mais emblemáticas, as fotos de navios que ao invés de flutuarem em extensas superfícies líquidas, estão agora inertes um horizonte seco e gretado.

Existem dois casos emblemáticos de barcos que hoje, estão ancorados em mares que viraram sertão: o Lago Urmia (Iran), e o Mar de Aral (Turquestão), expressão de uma agonia que em poucas décadas, destruiu massas líquidas dantes magníficas pela vastidão (basta compará-las com a área da região administrativa de Presidente Prudente, que é 23.799 km²), pululantes de vida e formosura.

É o que ocorreu com Lago Urmia (5.200 km²), desastre que tocaria fundo no mais duro dos corações. Belíssimo, era o maior do Oriente Médio. Entretanto, o desvio e contenção das águas que fluíam para o Urmia por represas no Iran e países vizinhos, a construção de estradas a cruzarem o lago e a abdução do líquido pela agricultura acarretou rápida retração do Urmia. Em quatro décadas, foi reduzido a 10% da área que ocupava desde tempos imemoriais.

No caso do Mar de Aral, os desequilíbrios hídricos igualmente induziram a virtual desaparição de um espelho d’água gigantesco (68.000 km²). O desmatamento e uso intensivo do solo provocaram assoreamento acelerado, processo agravado pelos planos quinquenais esboçados na antiga URSS, estipulando o desvio dos rios Amu e Sir-Darya para a cultura mecanizada de algodão. Assim, o Aral deixou de receber o essencial da água que mantinha seu nível. Entre 1960 e 2000, perdeu metade do volume e as margens recuaram 80 km. Hoje, a área do lago corresponde a 10% da original.

Cabe anotar de que estas tragédias poderiam ser precipitadamente minimizadas por acontecerem, no final das contas, bem longe das plagas verde-amarelas. Porém, estes desastres integram uma pauta global de desequilíbrios da qual o país não está imune. Ainda assim, é possível que alguém pondere que no país, no final das contas, não existem barcos aprisionados no leito ressequido de corpos d’água.

Não seja por isso: Durante a forte estiagem que acometeu o país no ano de 2015, repórteres fotografaram embarcações em leitos secos em Manaus, em pleno centro da Amazônia, grave advertência de que a calamidade da água doce também bate às portas do país. Em suma: o Urmia e o Aral podem ser aqui.

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