Assegurando o fluxo das águas

OPINIÃO - Maurício Waldman

Data 19/04/2019
Horário 04:58

Era uma tarde quente de setembro de 2010. O sol dominava a cidade de Luanda, em Angola, numa intensidade tropical que não admitia dúvidas. Transcorria então na Assembleia Nacional a conferência do professor Fernando Mourão, intelectual de notório saber (falecido em 2017), que se tornaria em 2012-2014, supervisor do meu segundo pós-doutorado desenvolvido na USP (Universidade de São Paulo). A fala do professor Mourão fora precedida pela do enviado da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o tema “Água para Todos”, um discurso solene que transcorria sem perguntas ou objeções, até porque em meio a uma sala abafada, o momento não parecia propício para embates.

Pois então, Mourão, cuja franqueza era sua marca registrada, disparou sem aviso prévio: “Que história é essa de água para todos? De onde vocês vão tirar água para todos? Isto não faz sentido”. Nesta senda, a audiência, repentinamente desperta, acompanhou dados de tal modo constrangedores para o arauto da ONU, que este se retirou do ambiente, sem protestar. Intempestividades a parte, o fato é que o professor Mourão desfiou uma linha de raciocínio lógica, um padrão de argumentação que, aliás, não pode ignorado nos debates sobre a água. Neste sentido, pesquisas do autor deste texto com foco na Bolívia, justificariam o desabado de Mourão.

A Bolívia é conhecida por conta de célebre movimento pelo direito de acesso à água. Em Cochabamba, terceira cidade do país, a privatização dos serviços públicos de água em 1999, pelo general Hugo Banzer, deflagrou duro enfrentamento entre o povo e as autoridades. A companhia Águas del Tunari, que abastecia a cidade, passou para o controle da Betchel, uma poderosa corporação dos EUA. De pronto, os novos gestores aplicaram uma “gestão racional dos recursos hídricos” cujos resultados logo se fizeram sentir. As tarifas subiram entre 100% e 200%, chegando a consumir 80% da renda familiar dos munícipes.

Rapidamente, multidões foram às ruas em protestos generalizados, e em tal escala, que ganharam as manchetes como Guerra da Água de Cochabamba, obrigando o governo anular a privatização, restabelecendo o controle público sobre a água. Mas, seria ótimo que o acesso à água fosse exclusivamente garantido por medidas de gestão e por programas de universalização do desfrute do líquido. Nesta ótica, seria suficiente reformar os modelos políticos para que problemas associados à água deixassem de existir.

Confira-se que o simplório bordão pelo qual o reino do político é a chave para a resolução dos problemas, obscurece distinção seminal lembrada e ensinada pela boa filosofia: a que se estabelece entre condição necessária e condição suficiente. A mobilização da sociedade é condição necessária para atender as aspirações das comunidades. Mas, em si mesma é insuficiente, pois o essencial é que o bem a ser oportunizado, isto é, a água, exista em qualidade e quantidade para tal.

Acontece que hoje, apesar do governo boliviano alegar que 80% da população tem acesso à água potável, o modelo atual de desenvolvimento está destruindo fontes do líquido em todo o país. A economia boliviana baseia-se na extração de recursos naturais finitos, em volume e intensidade, com produção destinada à exportação. Por exemplo, a mina de San Cristobal, a maior do país, consome sozinha 43 milhões de litros de água/dia, o suficiente para abastecer quase metade da população de Cochabamba. Logo, existem motivos de sobra para temer que não exista água na proporção desejada pelos bolivianos, em especial para os grupos de menor renda.

Deste dilema, sem objeções quanto aos justos reclamos das populações, impõe-se a conclusão óbvia que o fundamental, em primeiro lugar e último lugar, é priorizar os programas de conservação da água. Isto porque não se garante o que não existe. O professor Mourão estava absolutamente certo: é insuficiente instalar torneiras, mas antes, garantir que as caixas d’água estejam repletas, preferencialmente até a borda. Conselho que vale para todas as sociedades, inclusive, fato também óbvio, para a nossa.

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