Eu e as coisas

OPINIÃO -

Data 15/12/2021
Horário 05:34

Estou em São Paulo. No breve percurso que faço à pé até o local do trabalho não consigo enumerar quantas são as pessoas que dormem nas ruas da metrópole desvairada. Dizem que são mais de 60 mil pessoas em situação de rua por aqui. E o quadro se agravou ainda mais com a pandemia, conforme relatos de entidades que trabalham diretamente no acolhimento dessas pessoas.
Por causa do frio e da chuva fina, cada um se protege como pode entre trapos e farrapos, aumentando a sensação de coisificação dos seres humanos. Eles nos ajudam a criar a ilusão que não estamos diante de pessoas, mas de pedaços de objetos largados pelos caminhos da grande cidade. Pior do que objetos, são coisas. Sabemos que todo objeto é alguma coisa para alguém, que gera um sentimento ou uma ação. As coisas em si existem independentemente do espírito e do conhecimento que este tem delas.
Eu preciso andar rápido porque muitas reuniões me aguardam lá no serviço, mas impossível não pensar quem sou eu diante daquelas coisas. Não posso falar da minha insignificante existência naquele percurso diário sem as coisas. Eu sou eu e minha circunstância. Eu não posso falar de um eu sem as coisas. Nem coisas já dadas, nem um eu já pronto para começar a trabalhar. Particularmente, sempre me chama a atenção uma moça que se estabeleceu debaixo de uma marquise. Eu fui acompanhando as movimentações dela no decorrer do ano.
Quando ainda era verão, a moça compartilhava o seu canto com um companheiro. Ela era sempre muita brava com ele. Por causa da sua agressividade, nunca ousei dizer sequer um bom dia! Ela colocava o moço para fora da “cama” bem cedo e começava a organizar o espaço. No decorrer do ano a moça trocou o rapaz por três cachorros e passou a viver numa barraca de camping. Talvez ela estivesse alcançado uma condição melhor pelo menos para enfrentar os desafios das noites paulistanas. Sim. Quando o Sol se põe a situação fica mais complicada. Parece haver disputa pelo território, lembrando-nos que viver é tratar com o mundo, dirigir-se a ele, agir nele, ocupar-se dele.
Outro dia eu assisti uma cena curiosa. A moça já estava acordada e varrendo a sua “varanda”, quando foi interpelada pela sua vizinha. Era a faxineira da loja que conversava com ela, nos lembrando do sentido do que está em nosso entorno, do direito ao entorno.
Nesta semana a barraca não estava mais lá. Ficou um vazio no meio do meu caminho. O que aconteceu com a moça? Espero que esteja bem. Eu continuo fazendo o mesmo caminho. Não sou mais dono do meu ser. Somente sou na minha inseparabilidade com as coisas. Melhor dizendo... quem é o ser? A moça que se foi ou eu?
 

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