O colapso do sistema

OPINIÃO - Helber Henrique Guedes

Data 01/11/2025
Horário 05:00

Nos últimos dias, o Rio de Janeiro voltou a ocupar o noticiário do país com uma tragédia que escancara a falência moral da nossa política. A operação policial mais letal da história do Estado — com mais de cem mortos — foi apresentada como combate ao crime, mas o que se viu foi mais uma chacina respaldada pelo poder público, uma ação deliberada que transformou favelas em campos de guerra.
O governador Cláudio Castro, sustentado por uma base de extrema direita e por um discurso de “ordem e progresso”, conduz um projeto político que recompensa a morte e normaliza a barbárie. Como analisou o pesquisador Tadeu Kaçula, trata-se de um “estado de sítio não declarado”, onde a violência de Estado é institucionalizada e o inimigo é sempre o mesmo: o corpo negro, pobre e periférico.
A chamada Lei Faroeste — que prevê bonificações a policiais que atirem em supostos criminosos — é o símbolo mais cruel dessa política. O resultado é a tragédia que se repete: mães em desespero, crianças traumatizadas, jovens mortos antes de viver.
Como bem lembrou Fernanda Morgani, conselheira nacional de políticas culturais, “toda vez que a polícia entra na favela para cumprir uma política de segurança pública, todas as políticas culturais são dizimadas imediatamente”.
O que está em jogo não é apenas a segurança, mas o próprio tecido cultural e simbólico das comunidades.
Cada vez que uma operação destrói uma favela, morrem também os projetos de arte, as bibliotecas comunitárias, as oficinas, as rodas de samba e os pontos de cultura. Morre o Brasil que resiste.
E é por isso que a conselheira pergunta, com razão, como alguém pode dizer que o Sistema Nacional de Cultura “falta peças” se ele nunca foi colocado em movimento?
Falta compreender que cultura também é segurança pública, porque é por meio dela que se constrói cidadania, pertencimento e autoestima coletiva.
O Brasil é um país que adora o que o povo preto produz: tecnologia, saberes, danças, músicas, comidas, linguagens, espiritualidade. Mas o mesmo país que celebra a cultura preta odeia os corpos pretos.
O Estado se apropria da criação e extermina o criador. Essa é a essência de uma política que combina neofascismo, racismo estrutural e necropolítica institucionalizada.
Enquanto o poder branco decide, em um gabinete, quem vive e quem morre, a violência se torna ferramenta de controle. A polícia que entra na favela não apenas mata corpos: ela destrói histórias, saberes, redes comunitárias e a própria esperança.
Mas, diante desse colapso, há uma resposta possível — e ela vem da cultura. O Sistema Nacional de Cultura é a tentativa de erguer uma ponte entre o país que mata e o país que insiste em viver.
É uma política de reconstrução, feita a muitas mãos, que reconhece a cultura como pilar de cidadania, tão essencial quanto o SUS (Sistema Único de Saúde).
Enquanto o Estado chega armado, a cultura chega com escuta, com arte, com política e com vida.
Ela nos lembra que não há democracia possível onde o corpo preto continua sendo alvo, e que a cultura é, antes de tudo, uma política de sobrevivência coletiva.
O que aconteceu no Rio de Janeiro não é um episódio isolado: é o espelho do Brasil. E diante desse espelho, o que se pergunta é: até quando vamos conviver com essa dor como se fosse parte natural do Brasil?
Enquanto a política seguir sendo feita com armas e silêncio, caberá à cultura manter viva a palavra, a memória e o gesto de reexistir. Porque se o Estado insiste em matar, o povo insiste em criar. 

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