Paira no ar

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 25/10/2020
Horário 05:45

Há tempos que eu queria revisitar uma grande obra de Mário de Andrade - “Macunaíma: o herói sem nenhum caráter”. Ainda que publicado em 1928, a busca do autor pelas origens e singularidades da cultura brasileira nunca esteve tão atual.  Sem dúvidas, o pensamento macunaímico é um convite à navegação pelo imaginário coletivo de uma nação que não foi feita para amadores.

No mundo primitivo macunaímico os problemas que aparecem são resolvidos com muita naturalidade. Durante toda a rapsódia não existe barreiras entre o estado mineral, vegetal e animal, podendo fundir-se em um único corpo. É muito divertido subir por uma teia de aranha até o céu e virar a Lua! Ou mesmo acompanhar o caso de Ci que “resolveu” transformar-se numa estrela simplesmente porque estava desconsolada com a morte do filho.

Quando Macunaíma chega à São Paulo, encontra outra civilização bem diferente da que conhecia. De cara, estabelece comparações com os bichos que tinha visto com os novos da cidade: “....que despropósito de papões roncando, mauaris, juruparis, sacis e boitatás nos atalhos, nas sacovas, nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branca”! Aos poucos, Macunaíma vai percebendo que não era nada daquilo e cada vez mais vai ficando confuso: “...As cunhãs rindo tinham ensinado para ele que o sagui-açú não era sagui não, eram campainhas, apitos, buzinas e tudo era máquina....Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina”. Macunaíma não consegue entender o que era a máquina. E para ficar Deus dos homens brancos, tenta trepar com a máquina como tinha feito com Ci e mandar em todo mundo. Mas, a máquina é deveras egoísta e não quer saber de concorrente coisa nenhuma. Daí trava-se uma batalha entre Macunaíma e a máquina civilizada, e o nosso herói acaba levando vantagem porque para ele era tudo mais fácil.

Termino a leitura um pouco mais animado para enfrentar a rotina do inominável ano que não quer acabar. É preciso continuar acreditando que as coisas estão pintando porque as coisas estão pintando....uma lâmpada que há em nós volta a expandir seu brilho, no compasso da dança dos aymaras e dos quechuas do altiplano andino. Isso me dá saudades do Jorge, da Luisa e de nossos amigos argentinos, cubanos, colombianos. Espero que estejam bem! A América Latina é um pedaço do mundo, é o mundo. Mistura de raças, de cheiros, de ritmos, uma realidade que há séculos é salpicada dos temperos estrangeiros (tão fortes que tentam esconder seu gosto natural). A América Latina se integra num planeta que é todo uma coisa só. Daí eu percebo que alguma coisa está mudando no planeta. A longa noite vai passar...

Publicidade

Veja também