Observando nosso contexto atual, com relação à política, compartilho com vocês a indicação do livro “Umberto Eco, A passo de caranguejo-guerras quentes e o populismo da mídia”. No livro há crônicas muito interessantes. Entre tantas, considero “O lobo e o cordeiro: retórica da prevaricação” muito oportuna.
Aproveito para dar umas pinceladas em alguns trechos do mesmo. A retórica é uma técnica da persuasão. Como é do conhecimento, o próprio Aristóteles foi grande mestre de uma boa arte da retórica, e Platão nos diálogos usava artifícios retóricos refinadíssimos. A retórica tende a obter consenso e, portanto, não pode apreciar exórdios (abertura) que desencadeiem imediatamente a dissensão (divergência). É uma técnica, portanto, que só pode florescer em sociedades livres e democráticas, incluindo aquela democracia certamente imperfeita que caracterizava a Atenas antiga.
Se eu posso impor algo com a força, não preciso solicitar o consenso: assaltantes, estupradores, saqueadores e kapó (denominação dada aos vigias dos campos de concentração nazistas) de Auschwitz nunca precisaram usar técnicas de retóricas. No dicionário, prevaricar significa abusar do próprio poder para obter vantagens contra o interesse da vítima, e agir contrariamente à honestidade, transgredindo os limites do lícito, muitas vezes quem prevarica, sabendo que está prevaricando, quer de algum modo legalizar o próprio gesto e até mesmo - como acontece nos regimes ditatoriais - obter consenso por parte de quem sofre a prevaricação, ou encontrar alguém que esteja disposto a justificá-la. Pode se prevaricar, portanto, e usar argumentos retóricos para justificar o próprio abuso de poder.
Como exemplo, vamos usar a fábula do lobo e do cordeiro de Fedro: Um lobo e um cordeiro, movidos pela sede, chegaram ao mesmo riacho. O lobo parou mais para cima, e o cordeiro ficou muito mais embaixo. Então aquele malandro, movido pela gula desenfreada, procurou um pretexto para briga, e disse: Por que você turva a água que estou bebendo? Cheio de temor, o cordeiro respondeu: Desculpe, como é que eu posso fazer isso? Eu bebo a água que passa primeiro por você. Não falta astúcia retórica ao cordeiro, e ele sabe refutar uma argumentação fraca do lobo, baseando-se justamente na opinião, compartilhada pelas pessoas de bom senso, de que a água arrasta detritos e impurezas do monte para o vale e não do vale para o monte.
E aquele, derrotado pela evidência do fato, disse: Seis meses atrás, você falou mal de mim. E o cordeiro retrucou: Mas se eu ainda não tinha nascido! Outra bela jogada do cordeiro, ao qual o lobo responde mudando ainda a justificativa: Por Hércules, foi seu pai que falou mal de mim - disse o lobo. E pulou logo em cima dele e o dilacerou até matá-lo injustamente.
Esta fábula foi escrita para os homens que oprimem os inocentes com falsos pretextos. A fábula nos diz duas coisas. Quem prevarica procura antes de tudo legalizar-se ou legitimar-se. Se a legitimação é refutada, opõe à retórica o não argumento da força. A falsidade dos argumentos do lobo salta aos olhos de todos, mas muitas vezes os argumentos são mais sutis porque parecem tomar como ponto de partida uma opinião compartilhada por todos. O lobo convence a si mesmo e todos os presentes, de que ele come o cordeiro por ter sido contrariado.