Em meados da década de 1970, eu estudava na Escola Estadual Prof Macedo Soares, localizada na cidade de São Paulo. Naquela época ainda havia canto orfeônico na rede pública paulista. Explico para os mais jovens. Tais experiências eram resquícios de um amplo programa de educação musical implantado no país, desde a Era Vargas, sob a batuta do maestro Heitor Villa-Lobos. Aprendíamos os hinos brasileiros, melodias infantis, canções folclóricas e cantorias do rico repertório nacional.
Ocorre que, assim que cheguei naquela escola, eu estava mudando de voz e cantar era muito constrangedor para mim. Até o dia que tivemos uma situação muito engraçada. A professora queria que as meninas juntas cantassem “Pega o tatu!” e os meninos respondessem “Pega o tatu!”, em tom grave. Em seguida, todos juntos: “Pega o tatu que está estragando o meu quintal...” Mas não alcançamos o resultado musical esperado entre variações da frase em agudo e grave. A voz dos meninos foi uma sinfonia de bambus rachados de diversos timbres. Eu nunca presenciei um grupo tão desengonçado na minha vida. Foi quando percebi que não estava só!
Apesar do fracasso do “Pega o tatu!”, as aulas de canto orfeônico eram muito divertidas. Havia alguns instrumentos musicais para acompanhar as cantorias, especialmente de percussão. As aulas me despertaram para a possibilidade de tocar com outras pessoas e compartilhar com um grupo a experiência da musicalidade.
Recentemente, eu aprendi com o Paulo Moura, regente de corais e professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), que uma das experiências mais impactadas pelo isolamento social exigido pela pandemia foi o canto. Não há ainda tecnologia digital que substitua a imprescindível prática coral. A voz de cada um precisa vibrar nas cordas vocais do outro. É uma experiência corporal que generaliza o sentimento e unanimiza os indivíduos, como nos ensinou Mário de Andrade. Somos um povo da cantoria.
Pelo Brasil afora ainda resiste a diversidade rica dos cocos nordestinos, as rezas dos candomblés e das umbandas, a melodia infinita dos fandangos dos caiçaras paulistas, as formas corais monumentais dos reisados. E lá na rua eu escuto vozes roucas e o som ritmado de botinas em marcha no asfalto. Mas eles serão rapidamente abafados quando numa grande explosão de alegria ecoar o canto engasgado na garganta dos brasileiros. E, de cantoria em cantoria, vamos relembrar quem somos. Se eu canto, eu existo!