O problema começara de forma sutil, quase imperceptível, eu diria, apenas uma certa intolerância com pequenos sons, barulhos, músicas e vozes humanas, mesmo baixinhas e quase em sussurros. A estudante, bela e compenetrada em seus afazeres acadêmicos, tornou-se, aos poucos, intolerante a qualquer ruído, por menor que fosse. Quase sempre, o problema manifestava-se em seus silenciosos momentos de leitura, que se tornaram, com o avanço do semestre, cada vez mais frequentes. Acontece, porém, que o mundo não é mais tão silencioso, como fora, outrora, em um passado longínquo.
Aparentemente, o inconveniente era passageiro, não se lê o tempo todo, de modo que as inconveniências dessa intolerância eram sentidas, esporadicamente, em uma parte do dia, todos os dias. Entretanto, a patologia, por assim dizer, parecia tomar maior vulto, a cada novo som que penetrava, ruidosamente, pelas frestas das portas e janelas. Seus convivas, conscientes da questão, evitavam a todo custo e como podiam, fazer seus barulhos, que eram, todavia, sentidos como tão ensurdecedores quanto insuportáveis. A questão, portanto, tinha ares insolúveis. A jovem, por seu turno e por tais razões, isolava-se, procurando, como podia, um refúgio tácito.
Acontece que tal refúgio inexiste, sobretudo, nas grandes cidades, como essa, em que vivia essa personagem. Se não eram sons do trânsito, das ambulâncias, dos ônibus e caminhões, eram os cães, os vizinhos, os celulares, os ventiladores. Com o tempo, mesmo sons aprazíveis tornaram-se problemáticos, um miado, um cantar de pássaros, um latido, um bater palmas. Para viver, assim, dessa forma, ela passara a usar de subterfúgios, como trancar-se no quarto ou usar protetores de ouvido. Expedientes que se mostraram, com o tempo, em vão. O problema, talvez fosse possível aventar, não estava exatamente nos sons, mas, na intolerância a eles. Nesse caso, sendo assim, não existem quartos silenciosos e nem protetores de ouvido suficientemente satisfatórios.
Vivendo assim, com angústias constantes que pareciam não ter fim, as dores dos sons pareciam não recrudescer e uma solução precisava ser buscada, na medida do possível, para que se pudesse, de alguma forma, seguir em frente em sua nova paixão, que era, como sabemos, os estudos. Leituras infindáveis a tornavam sábia, conhecedora de muitos mistérios que habitam a alma dos seres humanos. As vozes, inconscientes, eram aquelas, talvez, intoleráveis. Sabidamente, perscrutá-las pode ser danoso a quem quer que seja, mesmo, aos mais bem preparados, pela vida, a tal missão. Com o tempo, com tamanha sensibilidade sonora, colocou seus ouvidos a escutar sons vindos do além, tamanha distância que os separava da vida comum e ordinária.
Convencida de que não poderia mais tolerar semelhante existência, em que, qualquer pequeno barulho tornava-se um verdadeiro tormento, resolvera, por fim, a fazer alguma coisa. Procurou um médico, explicou-lhe seus tormentos e angústias. Avaliou pormenores, discutiu questões, avalizou procedimentos e por fim decidira, radicalmente, por solução surpreendente. Entre viver e escutar, preferira viver, em silêncio, para sempre.