A cena é imbatível na sua ironia cruel.
Aqui, na penumbra morna da sala, o aroma da pipoca paira como um bálsamo. Lá, na tela de alta definição, os rostos se contorcem em desespero: a poeira da bomba, o olhar vazio da fome, a fila da corrupção que nega o pão. Um clique no controle, e o grito de guerra se transforma em um jingle de refrigerante. Outro clique, e a criança desnutrida em Gaza dá lugar ao sorriso plastificado de um apresentador.
O estalo do milho estourando é o contraponto perfeito para o ruído da bala. E é nesse hiato entre o conforto da poltrona e o horror do telejornal que a pergunta se instala, pesada como uma pedra no estômago: Como posso viver comigo mesmo?
A fé do contraste.
A religião. Ah, a fé. A grande promessa de salvação, o mapa para a paz espiritual. Mas é também o combustível mais inflamável da História.
A mesma fé que ergue hospitais e distribui refeições.
A mesma fé que faz irmãos se abraçarem.
É a mesma fé que, quando se veste de dogma, empunha a espada e traça fronteiras com sangue.
Católicos, muçulmanos, budistas, judeus, crentes de todas as bandeiras. Todos clamam pelo mesmo Deus, ou pela mesma iluminação, e terminam em uma corrida desesperada, uma competição espiritual pelo monopólio da verdade. Ganhamos a paz espiritual ao preço de condenar o próximo que reza diferente? A salvação, muitas vezes, não parece ser um refúgio, mas sim uma arena de combate onde cada um tenta provar que o seu pedaço de céu é mais legítimo. A miséria humana, com sua corrupção sistêmica e violência implacável, não é apenas um problema "lá fora". É um espelho. Ela começa no indivíduo que desvia o olhar. Começa na minha inércia confortável, no meu consumo cego.
Eu sou o microcosmo desse mundo caótico. A dor da humanidade está embutida no meu privilégio de poder escolher quando ligar e desligar a tragédia.
Minha miséria, o meu "pecado" contemporâneo, não é roubar um banco. É o pecado da indiferença, do distanciamento emocional mediado por uma tela de LED. É a facilidade com que engulo a pipoca enquanto a miséria do mundo é digerida como entretenimento, como um espetáculo lamentável, mas distante.
A pergunta não é: "Como o mundo pode ser assim?".
A verdadeira inquirição é: "O que em mim permite que o mundo continue sendo assim?"
A resposta não está no sermão ou no noticiário. Ela está na decisão de transformar o estalo da pipoca em um barulho menos alto que o chamado da consciência. Talvez só assim, aceitando o desconforto e agindo no pequeno universo que controlo, eu possa negociar uma trégua sincera comigo mesmo.