“Estar envolvido com a arte é algo que me foi dado como destino”

Grafiteiro e produtor cultural, Léozinho, como é conhecido, encontrou na cultura hip hop a forma se firmar como profissional e ajudar na ressocialização de crianças e adolescentes

José Reis - Leonardo conta que conseguiu realizar o sonho de mudar de vida com a arte
José Reis - Leonardo conta que conseguiu realizar o sonho de mudar de vida com a arte

Nascido em Santos (SP), Leonardo Ferreira, 43 anos, sempre foi apaixonado pela arte. Acostumado a fazer desenhos de heróis da Marvel quando era criança, ao se deparar com trabalhos feitos nos muros das cidades, percebeu que era aquilo que queria seguir para o resto da vida. Produtor cultural e grafiteiro, teve como primeira inspiração o projeto do metrô de São Bento em São Paulo, onde se deparou com a cultura hip hop no Brasil e acabou se identificando com as vivências. Hoje, após tantas conquistas que carrega consigo, Leonardo admite que, através da arte, conseguiu se opor às estatísticas da classe social e da realidade em que vivia. Ele acredita que estar envolvido com a arte é algo que lhe foi dado como destino.

Conhecido como “Léozinho”, o artista é o responsável pelas famosas obras de grafite do Centro Cultural Matarazzo, em Presidente Prudente. Não se contentou em somente realizar seus trabalhos, e quis levar valores técnicos e cidadãos para a sociedade afora, promovendo inúmeros projetos sociais com a comunidade prudentina e da região. Amante da cultura hip hop, por meio dela, Leonardo trabalhou com jovens e crianças, promovendo a ressocialização e ruptura do estereótipo marginal que se integra até hoje no gênero. “O hip hop contribuiu muito na minha vida para que eu pudesse ser o que eu sou hoje. Por isso, agora, eu quero levar para esses meninos todo o aprendizado que essa cultura me proporcionou, fazendo com que eles tenham outra visão de mundo e uma expectativa de vida”, declara.

O Imparcial: Como surgiu o seu envolvimento com a arte? E pelo grafite especificamente?

Leonardo: Eu morava em Santos quando era pequeno e sempre vi os trabalhos feitos nos muros. Eu cheguei a viver durante cinco anos em um orfanato aqui de Presidente Prudente e, logo que sai daqui, tive a oportunidade de voltar para a minha cidade. A partir disso, comecei a ir a encontros no metrô São Bento, em São Paulo, que era um ponto de referência para a “molecada” que dançava break dance. Foi quando eu vi um desenho dos Gêmeos e comecei a me identificar com essa cultura, tanto da dança, quanto do grafite. Quando eu era pequeno, gostava muito de fazer esses desenhos de cópia, com os heróis da Marvel. Um dia meu irmão me levou numa praia para brincar e lá havia um paisagista desenhando um trabalho autoral dele, e percebi que queria aprender aquilo. Quando eu cresci, acabei indo para São Paulo e fui analisando a situação do grafite. Com isso, eu me interessei e comecei a pesquisar, me atualizar e capacitar, por isso, hoje desenvolvo esse tipo de trabalho.

Trabalhar com produção cultural sempre foi algo que você quis ou foi algo que aconteceu?

Foi algo que aconteceu, mas não foi uma necessidade, pois, na verdade, eu não queria. A minha função de artista era mais como participante, pois eu sempre gostei de estar envolvido com a situação do fazer na prática e não do pensar e planejar situações. Mas aí eu acabei me envolvendo nesse ramo, e com essa oportunidade hoje desempenho essa carreira. No entanto, eu nunca pensei em nada diferente disso para a minha vida. Estar envolvido com a arte é algo que me foi dado como destino.

Qual a diferença entre grafite e pichação?

As pessoas ainda vêm essa diferença no Brasil, mas se a gente for ver, na Europa, não existe essa oposição entre pichar e grafitar, pois todo e qualquer tipo de expressão feita com spray, lá é visto como uma forma de manifestação artística. Aqui no Brasil, até o próprio grafite, se colocado em qualquer espaço público ou privado sem autorização, é considerado crime. No entanto, a pichação é um ato de vandalismo feito sem autorização, que acaba denegrindo um espaço público ou privado. Alguns artistas ainda têm esse mito de fazer essa provocação de invadir espaços abandonados para poder manifestar sua arte, mas isso é uma coisa do cotidiano dos artistas americanos e europeus. Porém, aqui, no nosso país, a diferença é bem clara: a pichação é crime e grafitar é uma arte quando é liberada.

Você acha que ainda existe certo preconceito com essa arte?

Sim, pois acho que falta uma melhor difusão do conceito do pintar, visto que o trabalho do grafite começou como uma maneira de protesto e hoje está dentro de grandes galerias, como o próprio museu do Louvre, em Paris. Eu acho que falta mais interesse das pessoas em conhecer mais e saber sobre a exposição da arte do grafite. Apesar disso, eu acho que as pessoas estão começando a abrir a mente para a inserção desta arte na sociedade, devido à difusão nos programas de televisão, revistas e comerciais que inserem o grafite. As escolas também vêm trazendo essa oportunidade de remodelar as partes internas do cotidiano escolar, com a presença do grafite, para que fique mais apresentável e agradável para os alunos.

Você já fez alguns projetos sociais com a comunidade. Fale sobre algumas dessas iniciativas.

Em Presidente Prudente, desenvolvi um trabalho de quatro anos no projeto Aquarela, assim como o projeto Criança Cidadã e oficinas culturais. Em Osvaldo Cruz, promovi o projeto Ser Feliz e, em Álvares Machado, o Casa da Criança, entre outros. Essas iniciativas sociais são muito bem-vindas e a situação de proposta quando um projeto me convida é normalmente de ressocialização. O objetivo é trazer a criança mais próxima desse mundo cultural, para que realmente não entre no crime e não venha a praticar uma atividade ilícita. Então, eu vejo com grande preocupação quando alguém fica à frente desses projetos, pois não é só convidar. Mas qualquer artista tem que fazer algo que beneficie essas crianças e jovens através dessa modalidade artística, que é o grafite. Não é uma situação fácil, pois você precisa ter muito embasamento para poder definir regras e estabelecer formas e metas para poder estruturar essa situação dentro de um projeto.

Você acha que a arte possui um poder transformador e pode contribuir para a formação cidadã das pessoas?

Sim, eu sou um exemplo disso. Acho que não tivesse a arte na minha vida, eu não conseguiria ter me tornado membro da sociedade. Ela pode contribuir de uma forma muito profissional, como modo de capacitação social através da arte. A arte me salvou muitas vezes. Hoje, em palestras e entrevistas, eu conto essa situação, pois eu fazia parte de um número estatístico de crianças e adolescentes que não tinham muita oportunidade, e quando encontrei o hip hop, eu comecei a ver o mundo de outra forma.  Se não fosse essa integração na minha vida, acredito que eu seria mais um a cometer atos ilícitos, pois não via uma boa expectativa na vida. Fui uma criança criada sem pai, só com mãe, ainda passei por um regime de orfanato e, por isso, nunca tive muitas regras. Por esse motivo, eu nunca tive muito medo de nada e nem de ninguém, e quando eu encontrei o hip hop eu vi tudo isso de forma diferente, pois da arte eu consegui fazer o remapeamento daquilo que eu precisava ser. Atualmente, com o projeto de dança que eu coordeno, eu tento dar para os meninos um pouco de regra, para que eles consigam ver um sentido na vida.

Como começou o seu trabalho na Secretaria Municipal de Cultura e quais atividades você faz aqui?

Em 1992, eu e meu grupo de dança precisávamos de um espaço para poder fazer uma apresentação cultural, a fim de mostrar para a população um pouco daquilo que a gente ensaiava aos finais de semana. Com isso, um amigo e eu, fomos até o secretário de Cultura da época, e apresentamos a demanda. Ele me perguntou como funcionava e pediu para fazer uma demonstração dentro da sala dele. Após isso, ele gostou e nos ofereceu um espaço na praça central, onde fizemos as primeiras manifestações de break dance da cidade Desde essa iniciativa, eu acabei me engajando, me representando como integrante da cultura hip hop, e me proporcionando a possibilidade de trabalhar pela cidade. Eu sempre procurei fazer tudo com responsabilidade. Meus grupos nunca tentaram denegrir nenhum tipo de espaço, o hip hop sempre pregou a união. Foi quando eu tive a oportunidade de fazer cursos de capacitação, buscando me qualificar para poder ministrar aulas. Minha primeira atividade foi como professor de dança em uma academia, onde formamos um grupo e representamos a cidade em diversos festivais de dança. Um dia estavam precisando de um produtor cultural que trabalhasse essa linguagem com as crianças no projeto Aquarela. Foi quando eu fui inserido dentro deste processo, assumindo a função de ministrante da cultura hip hop de um projeto social aqui em Presidente Prudente. Atualmente, sou diretor do Departamento de Atividades Socioculturais, participo da criação, elaboração e direção de projetos artísticos dentro da secretaria, auxiliando na produção de grandes eventos como o Fentepp [Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente] e da Virada Cultural.

Você já chegou a sofrer algum preconceito por conta dessa atividade?

Vários. Inúmeros deles pela própria polícia, muitas vezes, por falta de informação e devido ao sistema de abordagem por adotado. Entendo que isso é uma forma de melhorar e beneficiar a sociedade, mas nós, grafiteiros e artistas que pintamos na rua, não temos como nos identificar. Hoje eu consigo efetuar uma atividade noturna, inclusive durante a madrugada, pois tenho o crachá da Prefeitura por ser funcionário. Mas se eu sou um artista contratado. Além de ter que levar minha autorização do espaço que estou pintando, tenho que provar quem eu sou. Certa vez fiquei 26 dias pintando uma praça e durante 18 dias a polícia ia ao local parar saber quem eu era. Essa situação está mudando aos poucos, mas ainda falta muito.

Quais são os seus maiores sonhos tanto na vida pessoal quanto na profissional?

Parte deles eu consegui conquistar, como mostrar para minha mãe tudo o que eu faço hoje. Infelizmente, faz dois anos e nove meses que ela faleceu, mas ela teve a oportunidade de me ver atuando e fazendo algo de bom. Eu tinha esse sonho, pois ela era uma das pessoas que não acreditavam nessa situação da transformação de vida com relação à arte, e eu queria dar esse exemplo a ela e para as pessoas da sociedade. Muitos não apostam e não acreditam que o hip hop pode levar alguém ao caminho que eu levei. Um dos meus sonhos hoje em dia é ver as pessoas acreditarem cada vez mais na arte como um mecanismo de transformação na vida das pessoas. Um sonho da minha vida profissional foi representar Presidente Prudente em um campeonato nacional, fazendo com que as pessoas conheçam o local da nossa sobrevivência como fonte inspiradora para tantas outras pessoas.

Há algum projeto em mente que ainda não pode ser realizado, mas que você espera o momento certo para concretizar?

São alguns projetos, mas a gente espera o melhor momento, então, depende muito de como as coisas estão acontecendo. Com a troca de governo, ficamos ansiosos para saber quais leis virão e quais as formas e possibilidades de conseguir recursos para dar suporte às ideias. Isso é importante para que a gente consiga trazer artistas renomados para a cidade servir como uma fonte inspiração para a população daqui. A gente tenta fazer por si só, mas depende de recurso. O governo não está em um melhor momento de investimento, principalmente na área de cultura, quando se tem como prioridade a saúde e educação, deixando a cultura e o lazer para segunda opção.

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