Último desejo

Sandro Villar

O Espadachim, um cronista a favor da caipirinha e da caipiríssima

CRÔNICA - Sandro Villar

Data 07/12/2023
Horário 05:30

Noel Rosa que me perdoe lá no céu. Peço licença ao ilustre compositor para denominar esta crônica com o título do seu famoso samba-canção (presumo que o ritmo seja esse). Evidente que pensei em outros títulos, mas o de Noel me pareceu mais adequado.  
Bem, depois da explicação necessária, narremos a história de seu Gigio, italiano da Calábria com uma penca de filhos e netos, todos nascidos no Brasil. Com a idade mais avançada do que jogador impedido, seu Gigio caiu doente, atacado por uma pneumonia dupla.  
Alguns parentes irônicos, de olho na herança dele, disseram que o velho estava com pneumonia tripla. Ele ficou uns dez dias internado naquela tenda dos hospitais denominada de UTI, que deveria ser chamada de loteria da vida. 
Ali, o doente está pela bola sete, na marca do pênalti ou, se preferem outra metáfora ou exemplo comparativo, está no bico do corvo ou do urubu. Tanto faz, dá na mesma, seja corvo ou urubu.  
Bem que o médico fez de tudo para salvar seu Gigio. O doutor acabou entregando os pontos e, derrotado, chamou os filhos e a mulher do doente terminal. “Podem levá-lo. Ele manifestou o desejo de morrer em casa ao lado de vocês”, contou o médico aos parentes. “Mas o estado do Gigio é tão grave assim, doutor?”, perguntou dona Ernestina, mulher do velho. “É”, respondeu o médico de forma monossilábica, acrescentando que o paciente teria apenas mais algumas horas de vida. “Acho que  não passa de hoje”, alertou. Uma ambulância levou seu Gigio para casa, um sobrado que ele construiu vendendo linguiça calabresa no mercado municipal. 
Com o diagnóstico e a previsão do médico, a família tratou logo de preparar o velório. Qualquer família agiria do mesmo modo diante de uma previsão tão sombria, para não dizer sinistra, macabra e por aí vai (escolha aí, leitor, o verbete mais apropriado). 
Parentes que moravam em outras cidades foram avisados em conversas demoradas no telefone, para alegria das companhias telefônicas. Os mais abastados viajaram de avião.  
Já dona Ernestina estava preocupada em preparar algum prato para servir à parentada e aos amigos durante o velório. Sim, também se come e se bebe nos velórios. Vai ver é para evitar que alguém caia morto de fome diante do morto. 
Dizíamos que Ernestina estava envolvida no preparo de algum prato, e ela optou por fazer uma torta de calabresa com cebola e queijo. Além desses ingredientes, muito orégano para deixar a torta cheirosa, coisa para levantar doente terminal. 
Do quarto, Gigio sentiu o cheiro da torta, sua preferida, e, com a voz mais fraca do que o salário mínimo, chamou um dos netos. “Totonho, fala pra tua avó me dar um pedaço de torta”, ordenou. O menino foi à cozinha e explicou para a avó que esse poderia ser o último desejo do nono, o de comer um pedaço de torta.  A velha recusou. Ao voltar ao quarto, o neto contou ao avô sobre a decisão de Ernestina. “Porca miséria! Maledeta!”, esbravejou Gigio. E quis saber do neto o motivo da recusa: “A vó disse que a torta é para ser servida no velório”.     
 
DROPS (sabor bacalhau) 

Nota de R$ 200 é como cabeça de bacalhau: a gente sabe que existe mas não vê. 

Vaticínio ecológico: com a poluição do mar, brevemente bacalhau só de cativeiro. 

Está explicado: o bacalhau é salgado para combinar com o preço. 

Bacalhau norueguês ou português? Tanto faz. Pobre não come mesmo.

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