Vivemos numa era que aprendeu a adiar a morte, mas parece ter desaprendido a celebrar o viver. A medicina avança, a indústria farmacêutica se expande, novos tratamentos surgem todos os meses — todos prometendo mais tempo, mais controle, mais sobrevida. Mas, no meio dessa corrida pelo prolongamento biológico, esquecemos de perguntar o que realmente dá sentido aos nossos dias: como estamos vivendo?
Há uma tendência crescente de tratar a vida como um conjunto de parâmetros laboratoriais, curvas de sobrevida e estatísticas de risco. O corpo se transforma num projeto permanente de manutenção, e o viver passa a ser medido por check-ups, protocolos e terapias de última geração. A pergunta implícita parece ser: “Quanto tempo isso me dará?” Talvez a pergunta mais honesta seja outra: “Que tipo de vida terei nesse tempo?”
O escritor Albert Schweitzer, prêmio Nobel da Paz, captou essa angústia com rara precisão: “A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva.” Em outras palavras, o verdadeiro perigo não está no fim da vida, mas no esvaziamento da alma — quando sonhos secam, a criatividade se retrai, a intuição se apaga, e a existência se reduz a uma extensão mecânica de dias.
Jack London, por sua vez, ofereceu o contraponto luminoso: “Prefiro ser cinzas do que pó. Prefiro ser um soberbo meteoro, cada átomo em magnífica explosão, do que um planeta eternamente adormecido. A verdadeira função do homem é viver, e não apenas existir. Não gastarei meu tempo tentando prolongar esse tempo, usarei esse tempo, todo o tempo, para viver
Trata-se de um convite à intensidade, não à imprudência; à vitalidade, não ao descuido. Viver, e não apenas sobreviver.
Entre Schweitzer e London há uma síntese possível — e urgente. De um lado, a consciência de que a vida interior não pode ser sacrificada em nome de um tempo biológico estendido a qualquer custo. De outro, a coragem de afirmar que a vida só faz sentido quando contém brilho, energia, presença e densidade.
Não sabemos quando vamos morrer. Uns se vão cedo, outros tarde; alguns de forma serena, outros de modo trágico. A morte é um dado com o qual não negociamos. Mas o modo como vivemos, esse sim, é um espaço de escolha. E talvez essa seja a única liberdade verdadeira que possuímos.
O problema é que, sob a lógica contemporânea da hipermedicalização, fomos lentamente convencidos de que o maior objetivo da vida é não morrer — e não viver. Viramos consumidores de longevidade, e não praticantes da existência. Aceitamos tratamentos que nos prometem dias adicionais, mas pouco se discute o que esses dias serão: tempo pleno ou mera sobrevivência assistida?
É claro que a medicina salva vidas e tem papel essencial; negar isso seria tolice. Mas salvar vidas não deveria significar esvaziá-las. A pergunta que deveríamos fazer diante de cada nova promessa tecnológica, terapêutica ou farmacológica não é apenas “funciona?”, mas também — e principalmente — “qual vida isso me entrega?”
A maior perda da vida não está na morte física, mas no que resseca dentro de nós enquanto ainda respiramos: a alegria espontânea, a imaginação fértil, a capacidade de se maravilhar, a energia criadora que nos impulsiona. Quando isso se apaga, não importa quantas décadas ainda teremos — estaremos vivos por fora e áridos por dentro.
Por isso, talvez o debate público precise mudar de eixo. Em vez de nos fixarmos na obsessão pelo prolongamento indefinido da existência, deveríamos recolocar no centro a pergunta que realmente importa: o que queremos fazer com o tempo que temos?
A resposta a essa pergunta não está nos manuais médicos, nem nas bulas, nem nos gráficos estatísticos. Ela está em cada pessoa, em cada história, em cada alma que se recusa a apenas existir quando tudo dentro dela ainda pede para viver.
A morte virá — cedo, tarde, súbita ou serena. Mas o viver, esse sim, cabe a nós decidir. E talvez não exista coragem maior do que escolher a intensidade, a autenticidade e o brilho, mesmo sabendo que o tempo é finito.
Afinal, como já se disse, a questão não é como se morre, mas como se vive.