A bomba-relógio das barragens

OPINIÃO - Maurício Waldman

Data 31/01/2019
Horário 05:02

A história demonstra que desde a mais remota antiguidade a humanidade recorreu a toda sorte de obras relacionadas com o aproveitamento dos rios e das suas águas. Ao que tudo indica, a mais antiga barragem de que se tem notícia foi construída por volta de 3 mil a.C. no ressequido deserto da Jordânia. Mas, esta tendência se acelerou no mundo moderno, que expandiu como nunca o consumo de água. A celeridade deste dinamismo confirma-se pelo fato de que enquanto a população humana cresceu 4,4 vezes no século 20, o consumo do líquido no mesmo período expandiu 7,3 vezes.

O represamento dos rios para diferentes finalidades é uma resposta usual para atender as demandas por água doce. Desde o início do século 21 o globo assiste proliferação incontrolável da construção de represas. Em 1900, não existia nenhuma barragem de grande porte. Mas, por volta de 1950, estas eram 5.270, e 30 anos depois, 36.562. Uma estimativa recente informa que hoje existem 58.361 barragens em operação.

Seguramente, o símbolo acurado desta propensão em conter as águas dos rios seja a represa de Três Gargantas, na China. As proporções ciclópicas deste dique são patentes no seu reservatório, que acumulando 40 km³ de água, alterou a rotação da Terra, prolongando em frações de segundo a duração dos dias devido à retenção de imensas massas líquidas pela barragem. Num plano geral, saliente-se que as barragens são obras agressivas. No mundo, 88 milhões de pessoas foram deslocadas pela construção de barragens e hidrelétricas, motivando a organização de movimentos para resistir ao avanço de megaprojetos, no geral, idealizados por aparelhos de Estado que agem a revelia dos direitos sociais e ambientais das populações afetadas.

Porém, no prontuário associado à pulsão humana em barrar o fluxo das águas, não se permite calar quanto ao potencial destrutivo dos barramentos de fluidos ejetados pela atividade mineradora, que embora seja usuária modesta no total do consumo hídrico global (responde no Brasil por 0,8% do consumo hídrico nacional), o faz de modo a gerar uma coleção de sequelas socioambientais. Os diques de águas residuárias resultantes do revolvimento das camadas de solo e do beneficiamento primário dos minérios apresentam, em grau variado, toxicidade e nocividade para a vida humana e ao meio ambiente.

Sem nenhum exagero, milhares de barragens de detritos minerários, obras que em tese, refreiam a truculência das águas servidas, atuam como autênticas bombas-relógio. De uma hora para outra, os rompimentos formam verdadeiros tsunamis de lamas envenenadas, causando vítimas, desmantelando espaços de vida, destruindo propriedades e gerando danos ecológicos que podem perdurar por décadas.

Foi assim que, sem aviso prévio, o colapso da represa de resíduos da Mina de Certej (Romênia, 1971), a avalanche de detritos das jazidas de Merriespruit (África do Sul, 1994), o acidente da Planta de Alumínio de Ajka (Hungria, 2010), o desastre da mina de Mount Polley (Canadá, 2014), e no Brasil, o rompimento dos diques de Mariana e Brumadinho (2015 e 2019), acarretaram dolorosa quota de infortúnio e de inconformismo pela calamidade gerada pelas barragens das mineradoras.

Embora constituam apreensão mundial, destaque-se a singularidade perversa destes problemas no país, que detém 12% das águas de superfície do Planeta, acervo que estranhamente não tem sido suficiente para aplacar a sede dos nacionais. Isto porque a sanha pela destruição dos rios prossegue sem dar mostras de cansaço. A matriz energética baseada em hidrelétricas, a ignorar o potencial solar do país (o maior do mundo), e a difusão de represas de rejeitos renunciando cautelas técnicas, tem clara parcela de responsabilidades. Assim, mais do que lamentar pelo desastre de Brumadinho, se impõe rediscutir o uso das águas nacionais, que escasseiam em meio à omissão das autoridades e de desastres que não cessam. Mas que para o bem de todos, não tem como continuar. Aguardemos pelo que virá. Ou não.

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