A democracia no Brasil, em que pese ter início nos idos do século 20, após a ditadura militar, período marcado por forte repressão estatal que, sobretudo, alijava os cidadãos de exercerem, em sua “plenitude”, o denominado livre-arbítrio, ainda pode ser assim considerada. No país, em apertada síntese, foram aproximados 30 anos de luta para se alcançar a igualdade de direitos que foi concebida, sobretudo, com a implementação de uma nova Carta Política.
A Constituição Federal de 1988, nesse prisma, contempla a liberdade de direitos, a igualdade social, liberdade de voto e de expressão, e, ainda, um sistema de eleições livres. Incríveis ideais! Por outro lado, o que talvez não se esperava, era que a modificação da cultura de um povo até então oprimido fosse encontrar maior obstáculo do que a própria alteração legislativa em seu mais alto grau.
O lamentável atentado ocorrido em desfavor do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), em Minas Gerais, corrobora o estágio inicial de um organismo político obtido com grande intrepidez pela sociedade brasileira. A intolerância, o discurso de ódio, a liberdade de voto e de expressão, sendo contidas por atos de extremada violência moral e física, representam inegável retrocesso a esse regime político em que a soberania e o poder são exercidos pelo povo, através do sufrágio universal.
Cumpre-nos, neste momento de “luto democrático”, analisar, sob a égide jurídica vigente, se tal ato representa ou não um “crime político”. Nesta etapa, caro leitor, não se pretende aprofundar, por escapar ao escopo presente, a correção técnica de tal terminologia, ou seja, se a referência a expressão “crime” adequa-se ou não a tal espécie de infração.
A Constituição Federal de 1988 prevê, na parte inicial da regra do artigo 109, IV, a competência da Justiça Comum Federal para o processo e julgamento dos crimes políticos. Para Nelson Hungria, um dos maiores juristas que o país conheceu, tais infrações se caracterizam pela conduta que “ofende ou expõe a perigo de ofensa, exclusivamente, a ordem política em sentido amplo ou a ordem político social (compreensiva não apenas das condições existenciais e o regime governamental do Estado e dos direitos políticos dos cidadãos, senão também, nas suas bases fundamentais, a organização social, sobre a qual se ergue a ordem política em sentido estrito), e cujo autor, além disso, tem por escopo esse mesmo resultado específico ou assume o risco de seu advento”.
Em adição, de acordo com a teoria subjetiva, a existência de crime político não decorre apenas pela adequação da conduta a um tipo penal previsto no ordenamento como tal, mas exige, ainda, um especial fim de agir (dolo específico), consubstanciado na intenção específica do agente em ofender a ordem política.
O texto constitucional, apesar de a eles fazer referência, não conceitua “crime político”. Da mesma forma, também não há um conceito na legislação infraconstitucional. De toda sorte, percebe-se que, diversamente do que se pode concluir primariamente, crime político não é qualquer crime cometido contra um político. Deve, sobretudo, lesar ou ofertar risco de lesão aos bens jurídicos.
Para configurá-lo, é imprescindível a motivação política ou que a conduta tenha por desiderato colocar em perigo a segurança do Estado, do governo ou do sistema político vigente, além de atos que prejudiquem os interesses do Estado. Evidentemente o delito ora objeto de comento não se enquadra a condutas desse jaez, afastando sua conotação política strictu sensu, no âmbito da Lei de Segurança Nacional. Trata-se, em verdade, de crime comum, de natureza hedionda, motivado pelo consectário natural da imaturidade política que ainda possui contornos preponderantes na sociedade brasileira. Perde, mais uma vez, com isso, o Brasil!