A vida em transe

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 11/09/2022
Horário 04:30

Acabei de deixar pelas costas a cidade grande. Não fosse a chuva fina que insistia escorrer pelo asfalto, disseram que o céu de lá já estaria coberto pela fuligem de queimadas da Amazônia. A ampliação do trabalho nas plataformas digitais e do cibertariado (expressão importada por Ricardo Antunes para falar do novo proletariado que trabalha com a informática), call centers, telemarketing, fast foods, a uberização do trabalho. Aquele real infinitamente mais chocante do que qualquer texto possa retratar... Seria o fim das artes e das humanidades no futuro próximo?
Na medida em que fui me desvencilhando do congestionamento, a rodovia se transformava numa esteira de pensamentos. O céu era invadido aos poucos pelo azul e um silêncio profundo tomou conta de mim. Eu tinha que parar primeiro em Botucatu para participar da abertura de um encontro de estudantes de Biotecnologia. Esperava encontrar meninos high-tech que nasceram mergulhados no meio dos aparelhos tecnológicos modernos. De fato, eles estavam preocupados com a inovação, mas eram, sobretudo, jovens despojados dos ritos formais exigidos em cerimônias acadêmicas, o que me agradou sobremaneira. 
Antes da mesa de abertura, os organizadores do evento convidaram um grupo de rappers de bairros periféricos da cidade para uma performance rítmica e um duelo entre MCs. A apresentação não tinha nada de especial. Os artistas eram claramente iniciantes, mas envolveram rapidamente a plateia numa prática radical de aproximação da vida dura das ruas e a arte, numa espécie de “antimídia” que se contrapõe ao discurso da mídia institucionalizada e das velhas retóricas acadêmicas.
Pensei logo no poder transformador do teatro. Daqueles tempos em que eu gostava do “Teatro e seu duplo” de Antonin Artaud ou da “busca do teatro pobre” de Grotowski... Não deve ser por acaso que as “Artes Cênicas” é um dos cursos de maior procura na graduação e ainda atrai tanto os jovens, pensei comigo. Na medida em que se coloca como uma espécie de movimento de resistência, propondo o choque, nos ajuda a pensar a exigência de uma transformação profunda que envolva a compreensão, o questionamento e a troca de experiências. 
A vida aberta para uma série de surpresas. Melhor dizendo, um sistema de vida, um caminho para a vida. Dirigindo-se aos atores que ele preparava em seu estúdio, Stanislavski diria que é preciso “trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar sistematicamente os seus dons”. Nem tudo estava perdido. Era a vida em transe.
 

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