As vidas importam

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 30/08/2020
Horário 04:30

O Brasil irá atingir, no decorrer da semana, a triste marca de 120 mil mortes de Covid-19. Há quem compare e justifique tais números com outras taxas elevadas de mortalidade no país, banalizando ainda mais a perda evitável da vida de tantos brasileiros. Sinto-me dentro de um ônibus quando o motorista freia bruscamente, quase atropelando um ciclista. E como em um passe de mágica, os passageiros ficam ouriçados, fazendo vários comentários, e as pessoas começam a conversar sobre casos antigos com os vizinhos que outrora nem trocavam olhares. Tudo isto tentando disfarçar, desesperadamente, a dificuldade de lidar com o risco eminente da morte.
Pois é, nós não estamos falando apenas de números! Precisamos acordar do estado de letargia que nos encontramos...  Eu me dei conta dessa situação quanto estive relendo o conto “Morte na obra”, de Carlos Drummond de Andrade, que extraí do livro “Fala, amendoeira”. 
Nosso grande escritor descreve a situação que se instaura logo após um acidente fatal numa obra da construção civil, cujo operário caiu do sétimo andar... “Como não havia mais nada a fazer, deixou-se o corpo na mesma posição à espera do veículo que o transportasse ao necrotério”, intervalo que se instaura um tempo mágico entre a vida e a morte. Até o momento que o operário, como nos alerta Drummond, é “...coberto com um lençol tirado do barracão dos trabalhadores, acende-se as velas de costume”. E, aos poucos, a multidão vai se acalmando, olha pro relógio e comenta: - Estou atrasado! Há a necessidade de continuar a viver e vai em frente, retomando o seu ritmo de sempre. Afinal, a obra não pode ficar suspensa indefinidamente e precisa logo recomeçar, não é verdade?
Não é. A leitura de Drummond me faz lembrar do tempo que olhávamos para nossos mortos!  Quando nos defrontávamos com uma catástrofe e éramos tomados por um forte impacto, tentando compreender os mistérios de como é a morte e de como reagir diante da necessidade de viver. Momentos que saíamos do tempo cronológico e psicológico, para nos adentrar no tempo mítico que nos faz esquecer de nossos afazeres sem nos perceber ou nos preocupar se o tempo está andando ou se a vida continua lá fora. Tempo de sentir a morte por alguns instantes, entendê-la, talvez para se preparar para o futuro. Buscar compreender a relação entre o luto como expressão dos sentimentos pessoais da perda e o culto cívico dos mortos. O sentido político das mortes. Sim, porque as vidas importam. 
 

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