Oficialmente a escravidão acabou no Brasil há mais de 130 anos.
Mas na prática acabou mesmo?
O que acabou foi a escravidão sob o arquétipo que conhecemos dos livros e filmes de história, do negro acorrentado e açoitado nos primeiros séculos da existência do país; mas o trabalho em condições desumanas no qual o tomador de serviço trata o prestador como “coisa de trabalhar”, eliminando sua humanidade e consequentemente sem conceder-lhe os direitos constitucionais mínimos, este continua “vivo”.
Reprovável que é, a contratação e manutenção de trabalho escravo foi caracterizada como crime em 2003 no Código Penal no seu artigo 149, que diz: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Além da criação do crime acima, foi criado também em 2003 um “Cadastro” que contivesse lista de empresas e tomadores de serviço em geral que contratassem trabalhadores naquelas degradantes circunstâncias (a conhecida “Lista Suja”).
Ocorre que a criação do crime e da lista não foi suficiente para efetivamente inibir a contratação degradante, o que levou o Estado de São Paulo a criar, em 2013, a Lei 14.946, que prevê a cassação da inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS, de qualquer empresa que faça uso direto ou indireto de trabalho escravo ou em condições análogas, o que na prática inviabiliza a operação, o funcionamento da empresa.
Por ter a lei origem estadual, e não federal (União), além de outros motivos, foi proposta em relação àquela Ação Direta de Inconstitucionalidade que, na semana passada, teve seus pedidos julgados parcialmente procedentes pelo STF (Supremo Tribunal Federal), o que não é nada bom para as empresas e tomadores de serviço em geral.
Com a decisão do STF, o Estado de São Paulo poderá cassar a inscrição de uma empresa no cadastro do ICMS se comercializar “produtos em cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo”, e seus sócios poderão ficar impedidos por dez anos de exercerem o mesmo ramo de atividade.
O que o STF assegurou foi que só poderá ser efetiva a cassação e o impedimento aos sócios se no procedimento administrativo todas suas instâncias recursais forem esgotadas e que, uma vez efetivados os direitos fundamentais (constitucionais) ao contraditório e à ampla defesa à empresa e sócios, fique comprovado que sabiam ou tinham como suspeitar da participação de trabalho escravo na cadeia de produção das mercadorias adquiridas.
Com a “validação” da lei pelo STF, mais do que nunca torna-se necessário que as empresas invistam no procedimento de “due diligence” (cautela) ao adquirirem bens e serviços de fornecedores e que deixem a inércia caso tenham conhecimento ou, nos termos da lei, suspeitem de “trabalho escravo” naquilo que adquirirem e comercializarem, pois tanto a ação como a omissão poderão lhe acarretar severos prejuízos.
Sim, caro leitor-empresário, ao ler o texto acima você está certo: o cerco se fecha às empresas que só se preocuparem consigo mesmas, com seus negócios e não, também, com o mundo ao seu redor.