Cirurgia Robótica em Urologia: mitos, avanços e o futuro do tratamento de precisão

Em entrevista exclusiva, o urologista Antonio Mariotti desmistifica a técnica, detalha benefícios para pacientes e revela como a tecnologia está revolucionando o tratamento de doenças complexas

PRUDENTE - Sinomar Calmona

Data 30/08/2025
Horário 06:08
Foto: Sinomar Calmona
Dr. Anotnio Mariotti: “Hoje, opero em oito hospitais, em quatro cidades diferentes”
Dr. Anotnio Mariotti: “Hoje, opero em oito hospitais, em quatro cidades diferentes”

Com seis anos de experiência dedicados à cirurgia robótica e dezenas de procedimentos realizados, o médico Antonio Mariotti, mestre e doutor pelo Hospital Sírio-Libanês, explica em detalhes como essa tecnologia tem transformado a urologia moderna. Em um diálogo claro e educativo, o especialista desfaz equívocos comuns, descreve o rigoroso treinamento necessário e projeta o futuro dessa modalidade que já beneficia pacientes do SUS e da saúde suplementar.

Dr. Mariotti, comecemos pelo básico: o que é de fato a cirurgia robótica?
"A cirurgia robótica é uma evolução tecnológica da videocirurgia. Na prática, é um sistema onde o cirurgião fica sentado em um console, visualizando uma imagem tridimensional em alta definição do campo cirúrgico e manipulando os instrumentos por meio de controles ergonômicos. Os movimentos das mãos do cirurgião são traduzidos pelo sistema em movimentos precisos e filtrados de microtremores, realizados por braços robóticos dentro do paciente. É crucial entender: o robô não opera sozinho. Ele não tem inteligência artificial para tomar decisões. Cada movimento é realizado e comandado diretamente pelo cirurgião. É uma extensão tecnológica das mãos e dos olhos do médico, projetada para superar as limitações da laparoscopia tradicional”.

Existe um mito de que o robô operaria sozinho. Quem está realmente no comando?
"[Risos] Esse é o mito mais comum! Ontem mesmo um paciente me questionou, receoso de ser operado por uma máquina. Quem está no comando sou eu, o cirurgião. O sistema robótico é uma ferramenta sofisticada, mas passiva. Fico a alguns metros do paciente, no console, e todo o procedimento é realizado sob meu comando direto. A equipe ao lado da mesa cirúrgica assiste, troca os instrumentos e monitora o paciente, mas a dissecção, os cortes e as suturas são feitos exclusivamente por mim através do controle dos braços robóticos. A precisão é tão grande que podemos dissecar estruturas milimétricas, como feixes nervosos e vasculares, com um grau de segurança muito superior”.

Quais foram os saltos tecnológicos mais significativos em relação à laparoscopia?
"Os saltos foram enormes e podemos dividi-los em três pilares. Primeiro, a visão: saímos de uma imagem laparoscópica 2D, plana, para uma visão 3D com grande ampliação. Segundo, a articulação instrumental: os instrumentos do robô replicam os movimentos do pulso humano com amplitudes e graus de liberdade, superando a limitação dos instrumentos rígidos da laparoscopia. Terceiro, a ergonomia e estabilidade: o sistema filtra totalmente o tremor fisiológico das mãos e permite uma escala de movimentos, onde movimentos grandes meus se traduzem em movimentos minúsculos e superprecisos da ponta do instrumento. Essa combinação permite cirurgias reconstrutivas complexas, como anastomoses ureterais, que eram um grande desafio por outras técnicas minimamente invasivas".

“BENEFÍCIOS SÃO TANGÍVEIS
 E IMPACTAM DIRETAMENTE 
A RECUPERAÇÃO”

Do ponto de vista do paciente, quais as vantagens mais significativas?
"Os benefícios são tangíveis e impactam diretamente a recuperação. Podemos resumir em: menos dor, menos sangue, menos tempo no hospital e retorno mais rápido à vida normal. Como fazemos incisões pequenas, a agressão à parede abdominal é infinitamente menor. Isso reduz drasticamente a necessidade de analgésicos potentes no pós-operatório. O sangramento intraoperatório é minimizado pela precisão dos movimentos e pela visão ampliada dos vasos, o que praticamente elimina a necessidade de transfusões sanguíneas. Como consequência, os pacientes têm alta em 24 a 48 horas em muitos casos, como na prostatectomia, e retornam às suas atividades laborais e de lazer em um período muito mais curto, se comparado à cirurgia aberta tradicional."

 A prostatectomia radical é uma aplicação conhecida. A robótica ajuda a preservar a continência e a função sexual?
"Sem dúvida, esse é o grande divisor de águas. O câncer de próstata fica em uma região anatomicamente crucial, rodeada por feixes nervosos responsáveis pela ereção e por estruturas musculares que controlam a continência urinária. A visão 3D e a precisão instrumental nos permitem realizar uma dissecção fina, separando a próstata dessas estruturas críticas com uma preservação muito mais eficaz. Antigamente, as taxas de incontinência urinária significativa e de disfunção erétil permanente após a cirurgia aberta eram consideráveis. Hoje, com a técnica robótica, conseguimos preservar intencionalmente esses feixes nervosos (nerve-sparing) na grande maioria dos casos, resultando em uma recuperação funcional muito mais rápida e completa. É sobre curar o câncer e, ao mesmo tempo, preservar a qualidade de vida”.


 
“ROBÔ PERMITE RECONSTRUÇÃO 
INTRACORPÓREA COM SEGURANÇA, 
O QUE SE TRADUZ EM MENORES 
TAXAS DE COMPLICAÇÕES”

E para o câncer de bexiga, qual o papel da robótica?
"Para o câncer de bexiga musculo-nvasivo, o tratamento padrão-ouro é a cistectomia radical, a retirada completa do órgão. É uma das cirurgias mais complexas da urologia. A via robótica transformou esse procedimento. Conseguimos realizar a retirada da bexiga e a linfadenectomia pélvica (limpeza dos linfonodos) com uma precisão anatômica impressionante, minimizando sangramentos. O grande avanço está na fase reconstrutiva: a criação de uma nova bexiga, geralmente usando um segmento do intestino do paciente (neobexiga ortotópica). Fazer essa plástica, com suturas delicadas, por meio de pequenos orifícios, era impensável antes. O robô permite essa reconstrução intracorpórea com segurança, o que se traduz em menores taxas de complicações e uma recuperação pós-operatória muito menos tumultuada para o paciente”.

Para além dos cânceres, a robótica é aplicada em outras condições?
"Com certeza. Aplicamos a tecnologia em um espectro enorme de doenças urológicas. Nos tumores renais, a nefrectomia parcial robótica é o padrão-ouro. Conseguimos ressecar tumores complexos, mesmo os localizados profundamente no rim, preservando ao máximo o tecido renal saudável, o que é crucial para a função renal a longo prazo. Em outros casos, realizamos correções de malformações como a obstrução da junção uretero-piélica com excelentes resultados. Fazemos também reconstruções do ureter, pieloplastias e até prostatectomias simples para hiperplasia benigna de próstata de grande volume. Praticamente, qualquer procedimento que exigiria uma incisão grande no passado pode agora ser considerado para uma abordagem robótica minimamente invasiva."

“A INDICAÇÃO É SEMPRE UMA
 DECISÃO MÉDICA 
INDIVIDUALIZADA, 
BASEADA EM UMA EQUAÇÃO 
DE BENEFÍCIO-RISCO”

Como é definido se um paciente é um bom candidato para a cirurgia robótica?
"A indicação é sempre uma decisão médica individualizada, baseada em uma equação de benefício-risco. Avaliamos múltiplos fatores: o estádio e a agressividade da doença (por exemplo, no câncer de próstata, levamos em conta o score de Gleason, o nível de PSA e achados de imagem), a anatomia do paciente (como um histórico de cirurgias pélvicas prévias que possam criar aderências), e suas condições clínicas gerais (comorbidades cardiorrespiratórias que possam contraindicar longos tempos cirúrgicos ou o posicionamento especial requerido). O objetivo não é simplesmente usar a tecnologia, mas sim aplicar a melhor ferramenta para aquele paciente específico, garantindo o melhor desfecho oncológico e funcional possível. A conversa é individualizada, franca e transparente com o paciente e sua família."

Tornar-se um cirurgião robótico exige um treinamento extenso. Como é esse processo?
"A curva de aprendizado é longa e rigorosa, como deve ser. Após concluir a residência em Urologia, o médico busca especialização em Cirurgia Minimamente Invasiva. Minha trajetória incluiu pós-graduação, mestrado e doutorado no Sírio-Libanês, além de um scholarship nos EUA. A capacitação específica no robô segue um protocolo internacional: começamos com treinamento em simuladores virtuais, que avaliam nossa eficiência e economia de movimento. Depois, partimos para modelos animais e cadavéricos para vivenciar a sensação tátil e a coordenação. O estágio final é a proctoria: operamos pacientes reais sob a supervisão direta de um cirurgião senior certificado, que guia cada passo. Só após dominar completamente a técnica e ser aprovado é que ganhamos autonomia. É um compromisso com a segurança acima de tudo”.

“A NOTÍCIA MAIS 
TRANSFORMADORA VEIO 
RECENTEMENTE: 
A APROVAÇÃO PELO SUS”


 
Como o senhor vê a disseminação e o acesso à cirurgia robótica no SUS e na saúde suplementar?
"O cenário evoluiu dramaticamente. Há seis anos, era uma tecnologia restrita a poucos centros privados, com custos proibitivos. Hoje, opero em oito hospitais, em quatro cidades diferentes. Os planos de saúde já reconhecem seus benefícios em custo-efetividade (menos dias de UTI, menos transfusões) e têm ampliado a cobertura. A notícia mais transformadora veio recentemente: a aprovação pelo SUS. Após anos de advocacy médico e demonstração de evidências, conseguimos a incorporação da técnica para vários procedimentos urológicos. A implementação plena em hospitais universitários e de referência é uma questão de meses, talvez um ano. Isso democratizará o acesso à tecnologia de ponta, garantindo que a excelência no tratamento não seja um privilégio de poucos, mas um direito de todos".

Para onde caminha o futuro da cirurgia robótica? Quais os próximos avanços?
"O futuro é empolgante e caminha para uma integração ainda maior entre o cirurgião e a máquina. A cirurgia telementorada ou à distância já é uma realidade em testes, onde um expert em um centro pode guiar outro cirurgião em local diferente. A inteligência artificial (IA) começa a ser integrada aos sistemas: imagine um software que, em tempo real, durante a cirurgia, sobreponha imagens de ressonância ou tomografia ao campo cirúrgico, destacando a localização exata de um tumor. A fluorescência com corantes específicos (como o verde de indocianina) já nos permite, via robô, visualizar vascularização e identificar estruturas críticas. Estamos migrando de uma era de precisão anatômica para uma era de cirurgia guiada por dados e imagens, onde a tecnologia nos ajudará a tomar decisões ainda mais informadas em tempo real, personalizando cada gesto cirúrgico para a biologia única daquele paciente."

Qual a principal mensagem para um paciente que pesquisa suas opções de tratamento?
"Que ele busque informação de qualidade e um urologista com quem se sinta confortável para discutir todas as alternativas. A cirurgia robótica é uma ferramenta fantástica, mas não é a resposta para todos os casos. A decisão deve ser compartilhada, baseada em evidências e centrada no paciente. Perguntem sobre as opções, os prós e contras de cada uma, a experiência da equipe com o procedimento proposto e os resultados esperados. Meu papel é oferecer um tratamento individualizado, que vise a cura da doença e a preservação da qualidade de vida. A tecnologia veio para nos auxiliar nesse objetivo, mas a relação médico-paciente, baseada na confiança e no diálogo, continua sendo o cerne de tudo"

 

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