Enquanto a vida segue dura, o feijão sobe, o transporte falha e o salário trava, na outra ponta da cidade, atrás de portas bem-fechadas e paletós bem-passados, o tempo se adianta. A Câmara Municipal de Presidente Prudente resolveu votar o futuro. Mas não o da população — o deles mesmos.
Foi aprovado, com calma e estratégia, um reajuste de 97,1% no salário dos vereadores. Também vai ter aumento pro prefeito, pro vice e pros secretários. E mais: a casa vai ganhar seis novas cadeiras, saltando de 13 pra 19 vereadores. Tudo isso com validade só a partir de 1º de janeiro de 2029. Um aumento com data marcada, sem pressa e sem medo — afinal, até lá, a memória do povo pode ter sido apagada por novas urgências, novos boletos, novas enchentes, novos silêncios.
De um lado, o argumento técnico: desde 2012, os salários estavam congelados. O reajuste seria apenas uma correção monetária. Mas do outro lado — o lado das calçadas esburacadas, dos postinhos lotados e das promessas esquecidas —, o que se vê é o velho truque da política que se organiza para se proteger. O povo só aparece na conta da urna, nunca na conta bancária.
Aníbal Quijano, sociólogo peruano, chamou isso de colonialidade do poder. Um nome bonito pra uma estrutura feia, onde o comando político segue nas mãos de poucos, e os muitos só servem de cenário. Mesmo depois da independência, seguimos funcionando com a lógica dos antigos donos da terra: quem decide, decide por si e para si. Quem sente as decisões é o povo, que segue ouvindo promessas com eco e vivendo realidades sem voz.
Essa votação com efeitos futuros é, no fundo, uma tecnologia da blindagem. Eles não aumentaram os salários “agora”, veja bem. Aumentaram para “depois”, como quem planta o próprio privilégio num terreno político que imaginam ainda deles. Uma jogada feita no presente pra garantir conforto no futuro — sem consulta, sem debate popular, sem escuta.
Mas e nós? Vamos falar só por uns dias e depois esquecer? O barulho da indignação vai durar até o próximo escândalo? Ou vamos aprender a questionar, não só os atos, mas a estrutura que permite que esses atos se repitam, governo após governo?
Enquanto os salários deles sobem com régua e calendário, os nossos sonhos seguem sendo medidos a grão. E aí fica a pergunta: quem está de fato planejando o futuro dessa cidade? Porque o futuro, quando não é coletivo, é só projeto de poder. E disso, essa terra já tá cansada.
Referências sugeridas
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 107-130.