Comodismo às avessas

OPINIÃO - Thiago Granja Belieiro

Data 21/10/2021
Horário 04:30

O debate público é fundamental para superarmos nossos desafios enquanto nação, principalmente, aqueles que envolvem a economia e as desigualdades brasileiras. Entretanto, nesse debate, o discurso dos representantes do mercado continua ainda a veicular concepções que há muito se mostraram ineficazes e que merecem reflexão para uma salutar desconstrução. 
Faço referência, em especial, ao discurso da meritocracia, que atribui o sucesso ou insucesso econômico de um indivíduo simplesmente ao seu esforço pessoal, ao não comodismo, ao espírito empreendedor e ao bom aproveitamento do tempo para o estudo e para o trabalho. Foi o que observamos em artigo neste diário, no último sábado, em que meu colega atribui ao comodismo a existência de 400 mil vagas não preenchidas no setor de tecnologia.
Talvez seja redundante não esquecermos que para preencher essas e outras vagas, é fundamental que o trabalhador possua qualificação técnica e superior e que essa formação, por mais méritos que tenha uma pessoa, se conquista com oportunidades que as condições sociológicas podem ou não dispor a cada um. Obviamente que, indivíduos oriundos das classes médias e altas possuem melhores condições de ingressar numa universidade, seja pública ou privada, obter sua qualificação e preencher uma dessas 400 mil vagas. 
É quem está do outro lado do espectro social? O estudante de baixa renda, que precisa trabalhar, muitas vezes informalmente, para ajudar no sustento da família e de si mesmo, que condições ele possui para preencher essa vaga? Depois de oito ou dez horas de trabalho informal, morando e vivendo precariamente, ele terá motivação para aproveitar o tempo e se preparar para o vestibular brasileiro, um dos mais concorridos e desiguais do mundo? Ele terá motivação para fazer cursos gratuitos online como querem os arautos da meritocracia? 
O comodismo brasileiro não é dos pobres e despossuídos, é das nossas elites, que preferem fingir que os problemas do país não são seus. O comodismo é do governo federal, que sistematicamente corta investimentos públicos na educação e no desenvolvimento científico e tecnológico. O comodismo é das universidades privadas, que mesmo com milhares de vagas ociosas, preferem mantê-las assim, até que por mérito próprio algum aluno consiga renda suficiente para pagar suas mensalidades. O comodismo, no fundo, é de todos aqueles que enxergam no mercado e na meritocracia a solução para nossos desafios enquanto nação. 
 

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