Da Síria à Venezuela: os relatos dos refugiados e imigrantes em Prudente

As histórias das famílias vindas de fora possuem várias nuances, mas se cruzam em um ponto comum: a busca por dignidade para levar a vida de maneira mais íntegra e estável em um novo território

PRUDENTE - CAIO GERVAZONI

Data 05/09/2021
Horário 05:27
Foto: Cedida
Atualmente, Jeremias, 14 anos, estuda na Escola Estadual Professor Hugo Miele
Atualmente, Jeremias, 14 anos, estuda na Escola Estadual Professor Hugo Miele

Um recomeço de forma mais digna e humana. Este é o objetivo comum das pessoas que deixam sua nação de origem em busca de refúgio em outro país. Ano após ano, o fluxo de pessoas que buscam acolhimento em países estrangeiros tem crescido vertiginosamente. Segundo dados recentes do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), mais de 70 milhões de pessoas tiveram que deixar a nação materna devido a guerras, crises humanitárias, políticas e ambientais. De acordo com o Banco Interativo do Observatório das Migrações em São Paulo, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), desde 2000, a Polícia Federal registrou 788 imigrantes em Presidente Prudente. A maioria dos que se mudam pra cidade é proveniente de países das Américas, como Venezuela, Colômbia e Haiti, mas por aqui também se encontram pessoas de locais longínquos do planeta.

É o caso de Mohamad Okla, 42 anos, que, junto a esposa Erteefa Ibrahim, 32, e as filhas Salma, 12 anos e Hala, 7, chegou ao oeste paulista em 2019. Natural da Síria, a família Okla deixou o país do oriente médio, em maio de 2013, após a intensificação dos confrontos em Ein Tarma, região metropolitana de Damasco, capital do país do sírio. Sob o intermédio da filha Salma, Mohamed relata as cenas da guerra. “Pessoas morriam. Meu jovem amigo Marmuhd e sua esposa foram uma delas. Os caças do exército bombardearam a casa dele”.

Desde 2011, a Síria vive uma guerra civil de proporções devastadoras. O conflito bélico é um desdobramento da Primavera Árabe, que teve início em 2010 no norte da África, na Tunísia. Na Síria, a reivindicação dos revoltosos é a queda do governo autoritário de Bashar Al-Assad, que comanda o país desde 2000. O pai de Bashar, Hafez Al-Assad, tomou o poder em 1970 por meio de um Golpe de Estado.

“Nada. Não sobrou nada. Muita polícia. Ruas fechadas, helicópteros, armas e tiros”, expressa Mohamad ao falar sobre o cenário de barbárie que presenciou em sua terra natal. O sírio narra que antes do conflito tinha uma vida normal e estável. Ele trabalhava como taxista e, também, revendia automóveis. De 2012 a 2013, a situação piorou e os confrontos chegaram a Ein Terma, região em que Mohamad vivia com a família. “Muitos problemas. Vi muita gente comendo gato, lixo e plantas. Não podia falar nada contra o exército ou a polícia que já éramos interrogados”, expressa o sírio ao lembrar que as pessoas eram presas por qualquer gesto que ia contra ao regime de Bashar Al-Assad. “Eu não sabia o paradeiro das pessoas conhecidas: ou morreram, ou não se tinha mais notícias”, lamenta. 

Em maio de 2013, a família começou sua jornada em busca de uma vida mais estável para além das fronteiras da Síria. A primeira etapa foi a mudança para o país vizinho, a Jordânia. Seis meses antes da ida da família Okla, a mãe e a irmã deixaram a Síria rumo a Amã, capital da Jordânia, após a morte do cunhado de Mohamad. “Muito difícil em Jordânia também. Não pode comprar casa, não pode tirar documento. Muitas pessoas fugiram da guerra pra lá [Jordânia]”, relata o sírio ao contar sobre o período que viveu no país vizinho. Antes do Brasil, Mohamad e a família tentou refúgio por meio do consulado do Canadá e dos Estados Unidos, mas em ambos foi negado.

Em 2018, ao ser bem recebido pelo consulado brasileiro em Amã, o sírio se animou com a ideia de vir para o Brasil. “Eles me perguntaram: Mohamad por que você quer ir para o Brasil? Respondi que não tenho mais minha casa, não tenho mais vida”. Após cerca de 180 dias, a família Okla conseguiu os passaportes para vinda ao Brasil. “Um dia de viagem. Quatro horas de espera no Marrocos e até chegar ao Brasil”, relata o sírio, que desembarcou no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A estadia da família Okla na capital paulista não durou mais de 12 horas. “Dormi com um olho fechado e outro aberto. São Paulo é muito grande”, narra.

A vinda da família Okla para o oeste paulista

Por meio de uma comunidade, no Facebook, de pessoas árabes no Brasil, Mohamad conheceu o egípcio Ehabi, que vive em Rancharia e motivou a vinda da família para o interior de São Paulo. “Vivemos 4 meses em Rancharia”, conta Mohamad. Após este período, a família mudou-se pra Presidente Prudente. A filha mais velha do casal, Salma, 12 anos, está matriculada na Escola Municipal Rotariano Antonio Zacarias. Ela foi fundamental para mediar a entrevista da família Okla com a reportagem deste diário. A jovem garota conta que a adaptação a língua portuguesa é muito difícil. “Prefiro a aula presencial. É muito difícil para mim as aulas online. Não entendo muita coisa”, relata a jovem. 

“Grato. Pessoas me ajudaram. Conheci um rapaz gente boa, Dener, ele me ajudou muito quando não sabia uma palavra em português. Gosto muito de Brasil, aqui tem muita coisa”, diz Mohamad ao lembrar de uma pessoa que o auxiliou na chegada à Prudente.

“Com Covid, muito difícil conseguir trabalho. Muito difícil também aprender português para tirar carteira de habilitação”, relata Mohamad. Antes da pandemia, o sírio chegou a trabalhar como chapeiro em um restaurante de comida árabe em Presidente Prudente. Mohamad conta que também trabalhou por dois meses em um frigorífico, na região de Cascavel, no Paraná. “Lá conheci pessoas de Bangladesh, Tunísia, Nigéria e Sudão. Depois de dois meses, voltei. Minhas filhas ligavam chorando e falavam ‘papai, quando volta?’”, pontua. Hoje, para conseguir alguma renda, a família tem vendido comida tradicional árabe e síria em casa. “Pessoas aqui no Brasil são gente boa. Quando falo que sou estrangeiro, as pessoas me ajudam muito. Aqui em Presidente Prudente é uma cidade diferente. Não tenho família da Síria aqui, mas Prudente é minha família”, expressa Mohamad.

Atualmente, os sírios recebem apoio de um grupo da comunidade da Igreja Nova Jerusalém. A cantora Tata Miele relata o esforço do grupo para integrar a família à comunidade. “Nós temos um grupo de apoio à família do Mohamad onde a gente ajuda nas divulgações. Conseguimos tratamento dentário, internet para as meninas poderem estudar, roupas e alimentos. Sou uma eterna pidona para as pessoas contribuírem com a família”, expressa a cantora.

De Ciudad Bolívar para Prudente

Em 2018, na busca por uma melhor qualidade de vida, a família da cabelereira Ana Pugarito, 54 anos, deixou o centro histórico de Ciudad Bolívar rumo ao Brasil. A cidade com cerca de 400 mil habitantes fica às margens do rio Orinoco, na região sul-oriental da Venezuela.

A filha mais velha de Ana, Alba Pugarito, 32 anos, foi a primeira a deixar o país. “Alba veio antes. Ela tem uma amiga de infância brasileira que é daqui de Prudente e a ajudou a vir pra cá. O nome dela é Fabiana Souza”, conta a cabelereira. Posteriormente a vinda de Alba, dona Ana, começou a jornada para o Brasil junto a filha do meio Ronnyelis, 24, e o neto Mathias, 3. “Foram dois os principais motivos que nos levaram a sair de lá: encontrar uma vida mais estável e um tratamento para a situação de saúde do meu neto Mathias”, relata dona Ana.

O pequeno Mathias, filho de Ronnyelis, nasceu com acrocefalia (uma deformação patológica do crânio, que se alonga para o alto) e sindactilia (uma doença rara, que acomete tanto os dedos das mãos e pés, caracterizada por uma má formação congênita dos membros). Antes de chegar à Presidente Prudente, dona Ana, Ronnyels e Matias ficaram aproximadamente por um mês em Roraima. A primeira etapa da família foi em Pacaraima (RR), na fronteira do Brasil com a Venezuela.  “Lá na fronteira, tivemos a ajuda da senhora Marinez Pellegrini, da ONU (Organização das Nações Unidas), que também ajudou a Alba. Ela foi fundamental na vida da gente”, narra.

Depois da estadia de quatro dias em Pacaraima, a família conseguiu uma vaga para o pequeno Mathias no Hospital da Criança em Boa Vista, capital de Roraima. “Quando chegamos lá, decidimos ficar em um hotel, mas foi muito triste. A gente veio com um casal de amigos nossos, que o filho tinha hidrocefalia. O nenê de 9 meses infelizmente morreu e eles voltaram para Venezuela”, conta às lágrimas, Ana, sobre o episódio que a família vivenciou junto ao casal. “Mathias ficou cinco dias internado no hospital. Na época, teve um surto de virose por lá e ele acabou sendo contaminado. Foi um momento muito tenso e tememos pela vida do Mathias”, relata Ronnyelis.

Ana conta que a filha mais velha, Alba, que já residia em Presidente Prudente, avisou a família sobre a qualidade do HR (Hospital Regional) e que amiga Fabiana, enfermeira do hospital, poderia auxiliar no caso do pequeno Mathias.

Em julho de 2019, a família chegou à cidade. “Ficamos por pouco tempo na casa da Fabiana e logo depois, no primeiro dia mesmo, fomos para o HR. A partir daí a gente conseguiu internar o Mathias. Ele voltou a ganhar peso, a medicação mudou e foi melhorando com passar do tempo”, exprime a mãe do garoto que ainda precisa de uma cirurgia para não ter complicações futuras por conta da acrocefalia.

Dona Ana Pugarito relata outra epopeia que viveu: desta vez, com o filho mais novo, Jeremias, 14 anos. “O nosso destino inicial era Fortaleza. Eu viria junto com Jeremias. Mas por causa da condição Mathias, ele se tornou nossa prioridade”. A cabelereira conta que o filho mais novo teve que ficar na Venezuela por quase dois anos vivendo junto a avó materna. Quando Ana conseguiu ter condições para pagar a passagem do filho de Boa Vista até São Paulo e depois Prudente, o contexto de pandemia instalou-se no Brasil e após chegar a Pacaraima, o jovem teve que ficar por seis meses na fronteira. “Ele ficou em uma casa de amigos brasileiros meus naquela época. Depois deste tempo, ele foi até Boa Vista com dois amigos peruanos que trabalhei junto. Olha, foi uma situação muito dolorosa”, pontua.

Com o filho na capital de Roraima, Ana teve ajuda de um grupo religioso de Prudente para comprar as passagens de ida e volta para ir buscá-lo. “Graças a Dios, foi um final feliz. Também tive ajuda do conselho tutelar daqui para conseguir uma vaga na escola de imediato”, relata. Atualmente, Jeremias está no oitavo ano do ensino fundamental e estuda na escola estadual professor Hugo Miele, na Vila Esperança.

Por conta pandemia, dona Ana tem tido muitas dificuldades para se integrar economicamente à sociedade.  Ela trabalhou por algum tempo em um salão de beleza da cidade, mas precisou deixar o emprego por conta da crise sanitária. Por mais que o cenário atual não seja tão favorável, ela se diz feliz pelo acolhimento da família na cidade e, principalmente, pelo acesso das crianças ao ensino público. “Era uma coisa muito complicada no meu país. Os professores e a comunidade nos incentivam muito. O Jeremias, por exemplo, passou por acompanhamento pela escola. Agora ele está no oitavo ano”, relata a venezuelana Ana Pugarito.

 

 

Fotos: Cedidas


Em julho de 2019, a família Pugarito chegou a PP em busca de um tratamento para o pequeno Mathias


Natural da Síria, a família Okla deixou o país do oriente médio, em maio de 2013

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