Infância roubada

João é um menino de 11 anos, que pede socorro para o Papai Noel. Ele escreveu uma carta dizendo que estava sofrendo muito e dispensava presentes. Só desejava falar e desabafar para alguém que pudesse ouvi-lo e assim decifrar o que acontecia dentro dele. Sentia o coração batendo muito forte e dificuldade em respirar, tudo piorava quando a noite aproximava. Na cama, percebia que era inundado por muitos pensamentos e rolava, virando para a esquerda e virando para a direita. Ao despertar nas manhãs, percebia-se desvitalizado. E o desejo era de continuar na cama e nunca mais sair. 
A carta chegou para o Papai Noel, que intuiu certa urgência. Na mesma hora, combinaram de conversar pelo vídeo, pois estavam a quilômetros de distância. No primeiro dia, após as apresentações, João só chorou. Ele mal conseguia falar. Papai Noel permaneceu junto dele, com uma presença viva até João acalmar-se e poder falar. Iniciou dizendo que havia perdido o avô paterno e que brincavam muito de soltar pipas. Juntos, faziam os próprios papagaios. Papai Noel disse que ele estava vivendo o luto e sentindo a ausência dele. E que o tempo iria ajudá-lo muito e que poderia contar um pouco, de como foi seu avô. 
E assim continuaram conversando. João perguntou para ele, por que estava fraco e queria permanecer na cama. Nesse momento ele pediu se podia lavar o rosto, para despertar. Quando voltou, o Papai Noel perguntou: O que você pensa tanto, deitado em sua cama? Eu penso que minha mãe só gosta do meu irmãozinho de 2 anos. Ela me obriga dar mamadeira para ele toda manhã, às cinco horas. E durante a noite, ela me obriga a preparar o seu jantar. E ainda, tenho de lavar todas as louças. Ela me bate também, caso a desobedeça. Meus avós maternos discutem com ela, mas tudo continua igual. Eu choro de tristeza e desejo morar com meu pai. Ela não deixa. E minha cabeça dói muito, fico nervoso. Agora vamos sair da casa de meus avós. Estou com medo e confuso, longe de minha avó que me protege. 
Quando conversarmos novamente, já estarei em outra casa. Essas palavras foram ditas para o papai Noel com a voz encharcada de dor oceânica. Papai Noel disse: Vamos dar um abraço demorado. E assim, ele abriu os bracinhos e Papai Noel também. E ficaram um longo tempo, juntos. E as conversas seguiram. No diálogo seguinte, João já estava em outra casa. Encontrava-se muito cansado. Pediu se podia ficar quieto, sem conversar. Papai Noel disse que sim e que iria permanecer ali, junto dele e ao mesmo tempo, perguntou se podia contar uma estorinha chamada “O mágico de Oz”. E ele fez que sim, com a cabecinha. 
Em outro dia, além de conversar com João, o Papai Noel também quis conversar com a mãe de João, e ela disse que o João era o homem da casa, seu braço direito e que precisava muito da ajuda dele, pois já tinha 11 anos. Então Papai Noel disse: Você não acha que João está “carregando um peso” muito grande e é ainda uma criança? Brincar é preciso. Ao brincar, poderá dormir. Dormindo poderá sonhar. Sonhando poderá vir a realizá-lo. Ela chorou muito. E Papai Noel viu certa serenidade em João e um bem-estar. 
Certo dia, João ligou para o Papai Noel e disse que lembrou da estória do “O mágico de Oz” e complementou que com a sua ajuda, agora tem um cérebro para saber agradecer, um coração para ser generoso e coragem para dialogar com sua mãe. E sua mãe agora, o reconhece como criança. E que tem um parque grande na frente de sua casa para brincar.
Essa crônica é uma inspiração de cunho próprio, qualquer semelhança é mera coincidência. O fato é que enfrentamos essa realidade com muita frequência no contexto familiar. Crianças sofrendo violência doméstica e abuso sexual. Nessa crônica enfatizo a importância pela escuta e do espaço oferecido às pessoas que estão em estados críticos, sedentos por um espaço continente, acolhedor e transformador.  
 

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