Interulus

Carlito Cunha

CRÔNICA - Carlito Cunha

Data 23/12/2025
Horário 06:30

Ele tinha muito orgulho de sua participação da Segunda Grande Guerra. Alistara-se no Exército Italiano e combatera até 1943 na Albânia, vindo, depois, para ajudar os aliados alemães contra a investida brasileira a Monte Castelo. No armistício, em 8 de setembro de 1943, entrou em colapso junto com o regime fascista. Foi feito prisioneiro pela Força Expedicionária Brasileira, em Monte Castelo, mas libertado logo em seguida graças a uma defesa muito bem elaborada por sua irmã Emma junto a um coronel da FEB. Essa “defesa” dera-lhe quatro sobrinhos brasileiros pós-guerra. Mas Vitto Buonarotti tinha orgulho da farda e da época em que defendera, ou tentara defender a sua pátria.
Viera para o Brasil no mesmo navio que Emma – e o coronel - trazendo tudo o que lembrava sua passagem heroica pelo Regimento Granatieri di Sardegna. Afinal de contas tinha sido criado pelo nada mais, nada menos Duque Carlo Emanuelle II de Sabóia, em 1659 e ele, Vitto, tinha sido uma extensão daquilo! O que pôde trazer como lembrança: um cartucho deflagrado durante um combate; as divisas que usou na manga de sua farda; um botom com a granada, símbolo do Regimento, muito parecida com o usado pela Artilharia brasileira; um talabarte; a fivela do cinto e uma foto do seu grupo. Tudo muito bem protegido de traças, por quase um quilo de naftalina, guardado com todo carinho. Dizia sempre à esposa:
- Marietta, quando eu me for desta para melhor, quero ser cremado e que minhas cinzas sejam espalhadas em Reggio di Calábria. É meu último desejo.
- Sempre me vem com essas conversa... Para de falar dessas coisas Vitto – dizia ela aborrecida com aquele assunto – Noi vai viver muito ani ainda, belo.
- Ma, num to dizeno que é pra domani, mia cara. Pretendo tomá muito vinho ainda. Fica calma!
- Va via, você com suas ideia...
Mas a vida corre, esteja você tomando vinho ou não e, um dia, Vitto Buonarotti bateu com as dez. Chorou-se à italiana, velaram o corpo entre lágrimas, vinho e conversas muito gesticuladas. O cunhado providenciou tudo para que fosse cremado; esperou-se o tempo determinado para a retirada da urna com suas cinzas e aí começou a maratona. Elas, suas cinzas, teriam que atravessar o Atlântico até Reggio di Calábria para serem espalhadas na região, segundo o último desejo do cremado.
- Vamos despachar ele por avião. Não é barato, mas dá-se um jeito – disse um cunhado.
Mas quando declarou o conteúdo do pacote, a empresa aérea recusou. Problemas com legislação, coisas e tal e não... não poderia ser.
Lá vão eles com a urna para Santos, procurar uma empresa de navegação marítima pra fazer o despacho. O que tem, o que não tem, mas o que é isso, precisamos de alguns documentos autorizando... Fuça pra cá, fuça pra lá e... Não! Não foi possível despachar por uma empresa marítima.
E subiram a serra de volta pra casa com o Vitto dentro da urna.
- De que outra forma a gente pode mandar essa urna pra Itália, mamma mia?
- E eu sei? Pra mim só existe duas formas: avião e navio. - Bendita burocracia!
Mas, não, Enzo, de otto anni que brincava a um canto deu a ideia. Ma che ragazzo intelligente esse figlio de uma béstia! – Pelo Correio – disse.
No balcão dos Correios o funcionário perguntou o que havia na caixa. O cunhado, que sabia alguma coisa em latim, pego de surpresa, declarou:
- Interulus.
O funcionário, não querendo assinar atestado de burrice, fez que entendeu o que aquilo queria dizer e Vitto Buonarotti, do Regimento Granatieri di Sardegna, sem burocracia, foi enviado como roupa íntima para Reggio di Calábria... de Sedex.

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