Meu nome é Kathlen, mas pode me chamar de Kath!

OPINIÃO - Saulo Marcos de Almeida

Data 15/06/2021
Horário 05:00

Era apenas uma tarde tranquila de terça-feira, em que passava na casa da minha avó. 
A saudade naquele dia fez deixar o meu novo endereço para visitar aquela que ajudara a me criar também. Deixei a comunidade há um mês, mas ela não saíra de mim. 
Conversei e me diverti muito com a vovó. Comi os bolinhos que ela sempre fez para mim e, juntas, resolvemos ir à firma da minha mãe, dentro de uma das comunidades que integram o Complexo do Lins, Rio de Janeiro.
Foram poucos os minutos de caminhada, mas suficientes para lembrar que apesar de todas as agruras da vida: aqui nasci, fui criada, me tornei mulher e desejava muito ser mãe...!
Ah, sim! Algumas dificuldades eu experimentei e vivi.  Primeiramente, o estigma social de uma moça criada no morro de uma metrópole desumana e desigual. Sobreviver todos os dias superando o preconceito em razão do lugar onde se mora e da roupa que se veste, não é fácil! Realidade, fato social que não se deve ocultar: os nascidos e criados em favelas têm menos oportunidades e batalham muito para ascender numa sociedade competitiva e excludente. 
Mas também enfrentei o descrédito da minha etnia e cor da pele. Não se trata de ingênua vitimização, mas de resistência à discriminação quando se nasce preta no meu país e, por mais que as leis garantam a igualdade, o racismo é um processo histórico que modela a sociedade até os dias de hoje, privilegiando alguns em detrimento de outros que fogem ao padrão estabelecido. 
Apesar dos enfrentamentos e sofrimentos comuns de uma menina nascida e criada no Complexo do Lins, bairro/morro da cidade maravilhosa, sob a responsabilidade dos meus pais fiz a educação básica, completei o ensino superior e me tornei designer de interiores fazendo parte assim de uma reduzida parcela de brasileiros que chega ao topo da pirâmide educacional no Brasil. 
Ah, sim! Dirigia-me na direção da mamãe na companhia da minha avó, num dia relativamente calmo na comunidade. Mas no meio do caminho tinha uma pedra!
De repente ouvi estampidos de balas e, sem consciência de onde vinham, tombei atingida por um tiro de fuzil que atravessou o meu corpo, levou a minha vida e impediu-me de conhecer o meu renovo/fruto que, ao saber de sua morada dentro de mim, eu o denominei de bênção, dádiva divina: chamar-se-ia Zion/Sião - terra prometida, lugar e tempo de promessas e gratuidade de Deus, se menino fosse; teria o nome de Maya, em hebraico – sugerindo a pureza da água cristalina que nos é dada de forma bendita e dadivosa todos os dias da existência. Terra, água, filho/filha, direito de viver!
A violência, resultado da guerra urbana que afeta as comunidades do meu país, tirou-me a vida e o sonho de ser mãe quando tinha apenas 24 anos de idade. 
Não tinha mais tempo de ouvir a minha avó que, tentando proteger a mim e ao bebê, debruçou-se em cima de ambos e desesperadamente gritou: “Gente, pare de dar tiros, socorre minha neta”!    
Não tinha mais jeito de socorro algum e, infelizmente, faço parte de uma triste estatística que fere de morte gente tão nova, bonita e cheia de vida como eu: Kathlen Romeu. 
Tinha uma pedra no meio do meu caminho! 
Não sei, só sei que foi assim! 
 

Publicidade

Veja também