O gosto amargo do vinho

OPINIÃO - Ronaldo Curado Fleury

Data 07/03/2023
Horário 05:00

Em minha juventude, não tínhamos o hábito de beber vinho. A importação de boas garrafas era inviável para nossos parcos recursos, e os vinhos nacionais eram sofríveis. A curiosidade e o destemor próprios da adolescência me levaram a experimentar o que seria minha mais traumática lembrança de excesso na ingestão alcoólica: um porre do famoso Sangue de Boi. O impacto foi tão grande que, por anos, o simples cheiro de vinho me causava náuseas e eu cantava, sempre que me ofereciam, a canção de Chico Buarque que pedia para que o cálice de vinho fosse afastado de mim.
Nas últimas décadas, o direito do trabalho foi demonizado como sinônimo de atraso e de obstáculo para o desenvolvimento do país. A reforma trabalhista ou a “modernização trabalhista trouxe benefícios apenas aos empregadores que viram diminuir o número de ações trabalhistas sem que diminuíssem as fraudes e minguar a força dos sindicatos com quedas nas arrecadações de cerca de 90%. 
Uma das mais graves heranças dessa campanha contra a CLT foi, sem dúvida, a liberalização da terceirização, que prometia mais empregos e melhores condições de trabalho e entregou exatamente o oposto. Alertamos, ainda em 2017, que 94% dos trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão resgatados eram terceirizados.
Ainda assim, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal optou por julgar constitucional a irrestrita terceirização, vigorosamente defendida por empresários, parlamentares e até por alguns magistrados do trabalho, supervalorizando o princípio da livre iniciativa empresarial em detrimento dos princípios do valor social do trabalho, da dignidade do trabalhador e da justiça social. Com isso, consolidou-se o entendimento de que é possível existir empresa sem empregados, apenas com terceirizados.
Há poucos dias, fomos surpreendidos com a notícia de que 207 trabalhadores foram resgatados na região serrana do Rio Grande do Sul, onde, além das abjetas condições de trabalho análogas à escravidão, eram submetidos à tortura mediante choques elétricos, spray de pimenta e espancamento. Ato contínuo, as três vinícolas envolvidas se apressaram em declarar que tais trabalhadores eram empregados de empresa terceirizada e que não tinham qualquer controle sobre eles.
O argumento é exatamente o mesmo do utilizado por fazendeiros flagrados no interior do Maranhão, na mesma data, quando foram resgatados 17 trabalhadores e por quase a totalidade dos empresários flagrados submetendo trabalhadores a condições de trabalho análogas à escravidão. Na verdade, a terceirização somente se viabiliza pela diminuição dos custos e da responsabilidade para a empresa que toma os serviços.
Ao ler a notícia dos trabalhadores encontrados sob condições equiparáveis à escravidão na produção de enormes e lucrativas vinícolas nacionais, me veio ao estômago uma sensação de asco, agora causada pela revolta diante do ultraje imposto a esses trabalhadores brutalmente explorados e vilipendiados. Me pergunto, enfim, como se sentem os que defenderam o desmonte da legislação trabalhista e a liberalização da terceirização? Será que, como aquele jovem Ronaldo, o vinho lhes traz agora um sabor amargo?

Publicidade

Veja também