O outro  

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 31/12/2022
Horário 04:30

Na última crônica do ano, não tenho como deixar de tomar contato com a passagem do tempo e um diálogo silencioso toma conta de mim. Quem sou eu? Venho das montanhas, lá das cabeceiras dos rios. Segui o curso do Rio Tietê e ancorei nas barrancas do Paranapanema. E como um dia as águas dos rios desembocam no mar, visitei enseadas, mangues, portos, ilhas. Mas por onde eu caminhei, define quem eu sou? Claro que não. 
Sempre conversei com muita gente. Favelados, pescadores, estivadores, operários, boias-frias, camponeses, lideranças de muitas comunidades indígenas. Muitos livros, discos, fotografias, muitos mestres queridos!  Seria a minha tomada de consciência o conhecimento da posição que ocupo na ordem das coisas? Daí me veio a estranha sensação de já ter vivido este dilema. 
De repente, me dou conta de que o silêncio ao meu redor é aparente. Como se existisse uma voz dizendo nos meus ouvidos o que quero saber antes de mim. Entreolhamo-nos. Vi aquele menino a partir do qual me fiz professor. Perguntei a ele: “Qual foi o primeiro livro que você manuseou?” Rapidamente o jovem Raul me lembrou daquele livro de capa dura, “As veias abertas da América Latina” de Eduardo Galeano, que guardo como uma relíquia na minha estante. Em seguida, caminhamos juntos por dentro da escola. Trilhamos por uma série de relações existentes nesta silenciosa, mas onipresente, prática educacional do nosso dia a dia. O jovem queria saber das nossas dificuldades e acertos, como se fosse possível ele evitar as mazelas e amarguras que não há como fugir. 
Terminei esta conversa lembrando ao jovem Raul que ele gostava de ler Rubem Alves. Foi este autor que lhe ensinou como “é evidente que nem as redes dos pescadores, nem as redes dos cientistas, caem dos céus. Elas têm de ser construídas. O pescador faz suas redes com fios. O cientista faz suas redes com palavras, as teorias”. Ele ficou mais tranquilo e foi embora. 
Eu acredito que existe um jovem que habita dentro de nós. Jorge Luis Borges, em seu conto “O outro” - que recomendo (fortemente) a leitura, já descreveu sensação semelhante quando estava de frente ao Rio Charles, em Cambridge, e dialoga consigo mesmo sentado ali, bem mais jovem. Assim como o escritor argentino, eu acredito que é a minha relação com o Outro que me torna mais humano. Rimbaud, em carta a Georges Izambard em 13 de maio de 1871, diria “Eu é um outro” (Je est un autre). Mas termino mesmo é com a nossa poetisa Cora Coralina, pois também “acredito nos moços. Exalto sua confiança, generosidade e idealismo.”
 

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