O reencontro em Rosana: correndo pelas estradas da memória

SINOMAR CALMONA

Placa com nome da principal avenida de Rosana: homenagem ao meu tio José Laurindo, um dos fundadores do patrimônio

COLUNA - Sinomar

Data 08/11/2025
Horário 05:45

Na véspera da primeira Meia Maratona Entre Rios, que acontece neste domingo em Rosana, e vou participar, é impossível não me transportar para as minhas origens como corredor. Minha história com as longas distâncias não começou no asfalto liso de uma grande cidade, mas nas estradas boiadeiras do Pontal do Paranapanema, muito antes de eu saber o que era uma marca de quilometragem ou um sachet de gel.

Quando era criança, morando em Presidente Venceslau, a grande aventura do ano era a viagem de jardineira para Rosana. Boa parte do ano eu vivia na propriedade rural do meu tio José Laurindo durante toda infância. Era uma epopeia essa viagem. Seis horas ou mais por estradas de terra que, com a chuva, se transformavam em um lamaçal intransponível, nos prendendo na estrada por um dia inteiro, ou até mais. Íamos preparados, com marmita e água, conscientes da solidão daqueles ermos. Mas a recompensa ao chegar era pura alegria.

Meu tio, José Laurindo – nome que hoje batiza a principal avenida da cidade, um dos fundadores do patrimônio de Rosana –, tinha propriedade a sete quilômetros do pequeno povoado. Dali, eu avistava o Varjão e o Rio Paranapanema. A vida era a lavoura: amendoim, algodão, um pouco de gado. E, no meio daquela rotina, surgiu meu primeiro e mais urgente treino de fundista.

Minha avó, filha de escravos, nonagenária e de genética centenária, era benzedeira. Ou melhor, a benzeção era o pretexto sagrado que ela usava para sua peregrinação em busca de pinga. Viciada em álcool desde a infância – quando, no alambique, davam-lhe a bebida para ficar quieta –, ela tinha o hábito de fugir. E sumia pela estrada de terra, sozinha, rumo a Rosana. Meus tios e primos (Nica, Elcio, Dito, Rosaninha, Creuza e Vera) todos trabalhavam na lavoura dia inteiro.

Quem mais cuidou da minha avó foi minha irmã, Maria Aparecida Ferreira, a quem preciso render toda a honra. Mas eu e meus primos da minha idade praticamente, entre 6 e 10 anos, Robertinho e Marquinhos, também entrávamos em cena. Nossa missão era correr atrás dela. A estrada era perigosa, cheia de boiadas e comitivas, e partíamos no encalço daquela figura frágil e teimosa.

Antes dessas largadas de emergência, nosso aquecimento era peculiar: uma disputa para ver quem bebia mais ovos na granja. Cheguei ao recorde de 15. Sobrevivi à salmonela em potencial, mas herdei uma fobia de ovos que carrego até hoje.

E então vinha a corrida. Quatorze quilômetros ida e volta, sem nem sempre encontrar a avó no caminho. Muitas vezes, corremos os sete quilômetros até a cidade, reviramos Rosana e voltamos outros sete, sem sucesso. Onde ela estava? Caída, bêbada, na beira da estrada, onde passávamos alucinados sem a enxergar. Até que um cavaleiro solidário, conhecendo já aquele drama familiar, aparecia com ela na sela, trazendo-a em segurança para casa. O álcool é, de fato, uma tragédia.

Pensando bem, cheguei a fazer meia maratona naqueles dias. Pois quando a busca se prolongava, parando para revirar cada capim à beira da estrada, a distância percorrida facilmente ultrapassava os 21 km. Tudo isso sem tênis de carbono, sem gel de carboidrato, sem qualquer preparo. Só com a força do susto, o combustível do ovo cru e o amor por aquela avó de passos lentos e vontade férrea.

Hoje, quando me alongo para a Meia Maratona de Rosana, levo comigo a memória afetiva daquela propriedade, do meu tio Zezinho, da coragem da minha irmã e dos meus primos. Minha primeira maratona não tem medalha. Tem a poeira da estrada, o calor do Pontal, o medo de perder a avó e a alegria de reencontrá-la, trazida por um anjo cavaleiro.

Correr em Rosana não é só sobre esporte. É sobre voltar para casa. É honrar a memória de quem, sem saber, me ensinou que a linha de chegada é sempre um alívio, mas a jornada – com seus percalços e solidariedades – é que fica para sempre na alma.

Uma crônica em homenagem a todos os corredores e à cidade de Rosana.

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