A Marinha brasileira, em seu palácio de casacas brancas e protocolos de ferro, serviu a João Cândido, o Almirante Negro, um banquete de consequências que só a história, com sua impiedosa lentidão, consegue digerir.
Em 1910, o Mestre-Sala dos Mares não pediu: ele exigiu. Com a fibra de um tambor de guerra, liderou a Revolta da Chibata, silenciando o chicote que era a herança mais nefasta da escravidão. Sua dignidade, altiva e inegociável, era a de um homem livre que se recusava a curvar o corpo para aceitar o açoite. Naquele instante de bravura, João Cândido fez mais pela honra da nação do que qualquer almirante de sangue azul.
O Estado, porém, nunca perdoa a ousadia de quem lhe exige decência. O perdão inicial foi a armadilha mais vil. A promessa de anistia rapidamente se dissolveu no caldo da traição. O Mestre-Sala dos Mares, que dançara por um mundo sem chibatas, foi jogado no calabouço, depois expulso sumariamente da Marinha. Mas o sistema, em seu desejo de aniquilar não apenas o corpo, mas a sanidade e a moral, vestiu o fardamento de carcereiro. O próximo prato servido foi o mais ácido: a internação em um hospício, a tentativa final de transformar a rebeldia legítima em loucura socialmente aceitável.
Sua vida, a partir dali, foi sistematicamente destruída. A honra do marinheiro foi trocada pelo estigma do subversivo e do louco. O herói virou pária. O homem que negociou com o governo de pé foi obrigado a rastejar pela sobrevivência, vendendo peixes na Praça XV, no Rio de Janeiro. A miséria e o ostracismo foram seu salário final, e ele veio a morrer de câncer no intestino, pobre e esquecido. Um corpo negro, gasto e rejeitado pela mesma pátria que ele, em sua juventude idealista, ousou purificar.
Sua honra e sua triste história, envolvidas na honradez de um samurai, jaziam sepultadas até que o jornalista Edmar Morel, em 1953, resgatou-a no livro “A Revolta da Chibata”, trazendo a público, ainda que parcialmente, a saga de sua dignidade.
A nota de rodapé para essa tragédia só veio em 2008. Quase um século depois, 40 anos após sua morte, o Estado, com seu cinismo burocrático, reconheceu sua inocência. Tardia, fria e oca. A reabilitação chegou quando não havia mais vida para ser vivida, nem reputação a ser usufruída.
Contudo, a verdadeira redenção veio pela arte. A mais linda homenagem a João Cândido, o Mestre-Sala dos Mares, foi cantada por João Bosco e Aldir Blanc, imortalizando sua figura contra a mesquinhez da história oficial:
“Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala”
A história de João Cândido é o espelho quebrado da nossa República. É a prova de que a escravidão, abolida por lei, continuou viva na forma como a dignidade dos homens negros era tratada. Ele era a personificação da liberdade, e por isso o sistema o condenou ao preto do esquecimento e do luto. E, até hoje, essa mancha na história naval grita a mais profunda das injustiças.
"As carnes de um servidor da pátria só serão cortadas pelas armas dos inimigos, mas nunca pela chibata de seus irmãos".
João Cândido.