O voo alado de Ney: a sorte favorece o destemido 

Persio Isaac

CRÔNICA - Persio Isaac

Data 04/07/2025
Horário 06:00

Há nomes que transcendem a simples grafia, que ecoam para além das notas musicais e das luzes do palco. Ney Matogrosso é um desses nomes. Sua história de vida não é apenas uma biografia, é uma crônica de coragem, uma ode à liberdade e uma declaração poética sobre o que significa ser, autenticamente, você mesmo. Ney ousou ser feliz a sua maneira. 
Ele surgiu nos anos 70, em plena ditadura militar, como um cometa. Eu tinha 22 anos quando assisti os Secos & Molhados em São Paulo. Puta som, musicas e letras inteligentes como “Rosa de Hirohisma” e “Sangue Latino”. Ney muito a frente do seu tempo, muito além da compreensão dos tolos, desfilava maquiagens que borravam os gêneros, roupas que desafiavam o pudor e uma voz que era um grito de guerra e um lamento de amor ao mesmo tempo. Era chocante para a época, um afronta. Mas era, acima de tudo, arte pura. Um espetáculo que questionava, provocava e libertava. Lembro-me de ouvir os mais velhos comentando, com ares de espanto e fascínio, sobre "aquele cara que cantava sem roupa" ou "o que parecia um bicho". Ney já era lenda antes mesmo de consolidar sua carreira solo.
A coragem de Ney não se limitava ao palco. Ela estava em cada passo, em cada escolha de vida. Em um Brasil onde a homossexualidade era criminalizada e tabu, ele nunca escondeu quem era. Viveu sua verdade sem alardes desnecessários, mas também sem concessões. Essa autenticidade feroz se tornou um farol para muitos, um suspiro de esperança para aqueles que se sentiam à margem. Ele não apenas cantava sobre liberdade; ele a personificava.
Sua carreira solo é um capítulo à parte na música brasileira. Ney navegou por gêneros, reinventou canções, deu novas cores a clássicos e apresentou pérolas desconhecidas. Sua voz, essa ferramenta única e poderosa, transita do sussurro mais íntimo ao urro primal em questão de segundos. É uma voz que acaricia e que rasga, que exalta e que questiona. Ele é um intérprete genial, daqueles que pegam uma letra e a transformam em uma experiência visceral. Não se trata apenas de cantar, mas de sentir, de incorporar, de dar corpo à poesia.
A importância de Ney Matogrosso vai muito além das vendagens de discos ou dos shows lotados. Ele é um ícone cultural, um artista que moldou a percepção de muitos sobre o que é ser artista no Brasil. Quebrou barreiras, desafiou convenções e provou que a arte, para ser grandiosa, precisa de liberdade. Sua coragem poética não está apenas nas letras que canta, mas na forma como ele se apresenta ao mundo: sem filtros, sem amarras, sem medo de ser vulnerável e grandioso ao mesmo tempo.
Aos 82 anos, Ney continua no palco, com a mesma energia, a mesma voz potente e a mesma presença magnética. É como se o tempo não o tocasse, ou melhor, como se o tempo apenas o lapidasse, tornando-o ainda mais precioso. Ele é a prova viva de que a arte verdadeira é atemporal, e que a coragem de ser quem se é, é a mais bela das poesias.
E que sorte a nossa ter presenciado, e continuar presenciando, o voo alado de Ney Matogrosso.
"Rompi tratados
Traí os ritos
Quebrei a lança
Lancei no espaço
Um grito, um desabafo
E o que me importa
É não estar vencido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu sangue latino
Minh'alma cativa.."
 

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