Os negros de ganho no Brasil

OPINIÃO - Eder da Silva Santana

Data 20/11/2018
Horário 04:30

Contabilizamos 130 anos do final da escravização negra no Brasil. O dia da Consciência Negra nos convida a aprofundar reflexões acerca dos aspectos históricos e das condições socioeconômicas atuais dos negros no Brasil. Embora a nossa descoberta “oficial” tenha ocorrido em abril de 1500, a ocupação da colônia por portugueses teria se intensificado a partir de 1530, quando Dom João 3º (o Colonizador), rei de Portugal, externou real preocupação com a possibilidade de invasão de nossas terras por outras nações europeias de antanho, a exemplo dos franceses e holandeses (o que acabaria ocorrendo).

Em que pese a imprecisão dos registros históricos, provavelmente os primeiros negros escravos aqui aportaram em 1538, para auxiliarem na exploração do pau-brasil. Desde então, inclusive até 1757 em concomitância com a escravização indígena, atingimos a vergonhosa marca de 350 anos do regime social escravocrata.

A literatura especializada sugere que os povos primitivos não tinham a possibilidade de manter escravos, dada a escassez de alimento para uma sociedade que apenas coleta e caçava. Em caso de embate entre comunidades vizinhas, simplesmente sequestrava-se alguns despojos do grupo vencido e o eliminavam. Somente com o incremento da agricultura e consequente aumento da produtividade, o ser humano passou a escravizar outros humanos, e isso perdurou, literalmente instituindo um verdadeiro regime social, que perdurou tanto na antiguidade quanto em épocas mais recentes.

Em nosso caso, os movimentos de resistência negra e abolicionistas, além da necessidade da criação de novos consumidores demandado pela crescente Revolução Industrial, foram fatores decisivos para a “libertação” dos escravos negros no Brasil. A história dos afrodescentes no Brasil é riquíssima. Gostaríamos, neste momento de reflexão, de suscitar apenas uma delas: o contexto histórico dos “negros de ganho”. No período da escravização negra, a parcela majoritária dos escravos trabalhava na área rural, em fazendas como as de cana-de-açúcar e, posteriormente, no amanho do café, ou ainda na extração de minérios e metais preciosos. Mas, parcela significativa dos negros trabalhava em regiões urbanas. Dentre esses, destacavam-se os negros de ganho que, em geral, não ficavam sob a supervisão direta de seus senhores. Executavam serviços diversos, como ferreiros, carpinteiros, barbeiros, alfaiates. E, no caso das mulheres, como doceiras (as negras de tabuleiro, por exemplo).

Os negros de ganho trabalhavam e repassavam parte de seu ganho (a maior, é claro) ou todo ele aos seus senhores, em periodicidade diária, semanal ou mensal. Alguns desses negros, por árduo trabalho ou esperteza mesmo, chegaram a acumular dinheiro o suficiente para comprar sua própria alforria. Curiosamente, findo o regime social da escravização negra, temos nos dias de hoje não somente os negros de ganho, mas também, dentre outros, os brancos, os amarelos e os indígenas de ganho. São todas aquelas pessoas que saem de casa, de madrugada, para a labuta diária, tantas vezes exaustiva, perigosa e insalubre, e que ao final do dia, da semana ou do mês, se veem obrigadas a repassar parte de seus ganhos para os senhores da era moderna (dispensável nomeá-los).

Ainda nos dias atuais, 130 anos depois de encerrado o regime de escravidão, a compra de nossa “alforria” perpassa por condições econômicas e sociais a que tais senhores de engenho contemporâneos parecem não dispostos a discutir e ao menos melhorar, malgrado alguns avanços que mais se assemelham a paliativos para distensionar tensões sociais do que a evolução na relação entre fornecedores e tomadores de mão de obra.

Passados 130 anos desde a abolição desse “regime social”, há que se reconhecer alguns avanços sociais importantes, mas a verdadeira inserção do negro na sociedade brasileira requer, ainda nos dias de hoje, um olhar mais humano para sua história, o reconhecimento da dívida social imposta pelo regime da época e não equacionada até os dias atuais,  a correta compreensão da necessidade e utilidade das políticas de ações afirmativas (que devem ser temporárias) e a aceitação do outro apenas como um ser humano, independentemente de sua cor.

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