Ponto de mutação

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 21/11/2021
Horário 04:30

Outra noite eu dormi relendo a notícia do passeio da onça pelo Parque do Povo. No sonho, a onça parou na minha frente e ficou me encarando. Era uma cena angustiante porque eu queria continuar a minha caminhada, mas a onça não me dava passagem. Repentinamente, ela voltou um passo e, com grande impulso, deu um salto por cima de mim para se esconder numa pequena mata próxima dali. 
Eu acordei assustado. O que a onça queria dizer para mim? Muitos outros fatos me vieram à mente. Segundo os jornais, a onça chegou ao parque por dentro da tubulação que encobriu o Córrego do Veado. Fiquei pensando no mapa da rede hidrográfica envolvida pela malha urbana de Presidente Prudente da belíssima tese de doutorado de Beatriz Fagundes, defendida na geografia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) em 2018. 
De acordo com os acervos históricos que ela consultou, além de mata tropical fechada, em 1900, havia na região manchas de campos e de cerrado por onde circulavam muitos animais silvestres: onças, veados campeiros, pacas, tatus, tamanduás... Não é por acaso que os córregos que recortam a nossa cidade indicam tais elementos biogeográficos. Córrego da Tabuinha (taboa?). Córrego do Gramado. Córrego do Veado. Córrego da Onça. 
A cidade cresceu e passou por cima de seus cursos d’água. E a dona onça resolveu visitar as terras de seus ancestrais. Isso não ocorreu somente em Presidente Prudente. Javalis, macacos, coiotes, cervos, ursos e diversas outras espécies de animais também foram flagrados circulando pelas cidades desertas na Europa, na Ásia, na Austrália. É que os seres humanos encontravam-se enjaulados em suas casas durante a pandemia da Covid-19, e os animais silvestres ocuparam muitas cidades em quarentena pelo mundo, como quisessem dizer bem alto que nossas vidas representam para eles uma espécie de paisagem do medo.     
Eu não acredito que tantos fatos coincidentes sejam meramente frutos do acaso. É verdade que, sem o ser humano, a natureza se refaz de uma maneira relativamente rápida. Mas são as mãos humanas que transformam o mundo em um ritmo ainda mais acelerado. Microorganismos existentes em reservatórios silvestres transformados em agentes patógenos nos circuitos humanos. Gigantes tempestades de areia. Queimadas e escassez hídrica. Para conseguir voltar a dormir fiquei imaginando as bonitas imagens do filme baseado nas ideias do escritor austríaco Fritjof Capra. Não estaríamos próximo do ponto de mutação a partir do qual o nosso mundo transcende a si próprio até se perder no infinito? 
 

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