Dentro de uma garagem comum em Presidente Prudente, repousa uma oficina que não parece pertencer ao ritmo apressado do mundo lá fora. Não há barulho de produção em série, nem prazo para entrega. É no silêncio, que nasce a música. Não por meio de partituras ou de ensaios, mas do encontro entre madeira e ciência, ferramentas e sensibilidade reunidas através de um homem: Paulo Cesar de Almeida Raboni, 61 anos, professor da FCT Unesp, doutor em Educação, físico de formação e luthier por paixão.
A história que ele constrói com cada instrumento é feita também de memória. A primeira vez que ouviu um violão ser mais que acompanhamento, foi num disco de Carlos Iafelice, que ganhou da mãe. “Eu nunca tinha ouvido o violão tocar daquele jeito. Aí quando eu ouvi aqui, eu pensei: ‘não é possível’. Gostei demais. Quero tocar desse jeito”, relembra o professor.
A partir dali, a música se tornou uma constante. Paulo usava o violão da mãe, mas faltava algo: “cidade pequena do Paraná, não tinha professor nem nada”. Mais tarde, em Campinas, estudou com nomes importantes da música, mas a vida sempre o puxava para o lado da docência, a física e a sala de aula.
Formação do luthier
“Comecei a tomar contato com colegas que tocavam muito bem. Estudei com Milton Nunes, professor famoso, violonista bom, mas numa fase complicada da vida: eu estava começando o mestrado”. O doutorado trouxe ainda mais dificuldades para continuar na música. Paulo já era docente no câmpus da FCT e fazia aulas com Ademir Faciolli, professor de violão da Escola Municipal de Artes Professora Jupyra Cunha Marcondes. Nos anos 90, a escola ficava próxima à Unesp e ele conseguia ir andando. “Eu ia lá para conversar, mas não conseguia fazer os exercícios em casa”, recorda. “Tive que parar, não dava tempo de estudar. Então deixei de lado a ideia de ser violonista. Não tinha chance”.
Com as aulas, Paulo aprendeu a ser um bom ouvinte e apreciador da música erudita brasileira. Em paralelo, o universo da pesquisa prática sempre foi algo que gostou.
Décadas depois, essa história tem novos capítulos. Em 2019, durante as férias, Paulo tomou uma decisão: aprender a construir o próprio violão, em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, com o construtor de instrumentos Agostinho Cardoso em uma semana.
“Um violão assim de luthier, que é o artesão especializado na construção, reparação e manutenção de instrumentos musicais, é muito caro. Até daria para comprar, mas, em vez de investir para comprar um bom violão caro, eu resolvi aprender porque eu queria ter um bom violão. E hoje, por causa dele, eu toco mais”, diz Paulo sobre a motivação.
O primeiro contato que teve com a construção foi na Unicamp, quando ainda era aluno da graduação. Um dos professores do Instituto de Física, Hidetoshi Arakawa, era construtor de cravos. Ele não dava aulas, mas tinha um espaço, como um laboratório onde trabalhava com instrumentos. “Ele falou que era muito fácil de fazer. Para ele devia ser mesmo. Um cravo é uma coisa complexa demais, com uma quantidade enorme de cordas”, lembra Paulo. Hidetoshi chegou a ensinar algumas coisas para Paulo e seus amigos que também eram violinistas, como leituras de temperamento e afinação. “Na época, eu ainda não tinha despertado para esse interesse da construção”.
Foi só na pandemia, que o professor pode aprender errando. Fez um violão, mas no processo estragou muito o material. É um trabalho que ele nem gosta de mostrar, mas contar o faz pensar na sua evolução. “Faz parte da história. Vão ficar em algum lugar, onde tiver o espaço”.
Mais um violão
No ano passado, Raboni concluiu outro violão, que não tem vergonha de apresentar para a comunidade. O trabalho de construção demora. Exige, além de tempo, métodos, que para um cientista é fundamental. Ele prefere os modelos espanhóis, onde o corpo do violão já é feito emendado no braço. A formação em Física ajuda. O trabalho é totalmente associado com análises tímbricas e sonoras com ferramentas para medir vibrações.
Entre aulas, orientações e trabalhos de pesquisa, Paulo tem investido seu tempo livre no violão para aprimorar sua técnica. Na oficina improvisada, ele constrói instrumentos com paciência. O processo leva meses e é todo feito à mão. Só o tampo, parte responsável pela alma sonora do violão, pode levar dez dias de ajustes minuciosos na afinação. Mais que técnica, há esmero. O luthier cria até as rosetas, aqueles desenhos ornamentais ao redor da boca do violão peça por peça.
O processo leva meses e é todo feito à mão
O mosaico que Paulo tem feito leva mais de 4 mil peças de pequenos pedacinhos de madeira. “Eu gosto de fazer os detalhes. Filetes têm à disposição para compra com fornecedores, mas eu prefiro fazer o meu modelo mesmo, baseando o que eu vi por aí dos espanhóis que eu gosto bastante”.
Já são cinco instrumentos. Alguns ficaram pelo caminho. Outros estão prontos para ganhar o mundo. “Hoje eu acho que já dá para ser até uma atividade rentável. Eu vou levar um pra São Paulo. Um colega que eu conheci recentemente vai me ajudar a apresentar o violão”, conta.
A conversa, cheia de pausas calmas e olhos brilhantes, revela mais do que um hobby. É um reencontro com a infância, com o avô que fazia rabecas, um instrumento de cordas utilizado na Folia de Reis, com a mãe que tocava na igreja, com a ciência que nunca lhe saiu do sangue.
“Se a minha mãe não tivesse comprado aquele disco do Carlos eu teria demorado muito para ouvir uma música erudita tocada no violão e saber que o violão permite tocar músicas assim. Gastei o disco, ele está em casa ainda, algum lugar. Mas eu lembro das edições Paulinas com selo verde. Eu lembro dele até hoje. Se eu tivesse tido um professor de música lá [na infância], talvez eu tivesse me interessado pela carreira”, reflete.
Ainda sim, o repertório de Paulo já teve 30 músicas. Hoje, ele não lembra tantas, mas continua tocando em sala, eventos acadêmicos e festivais do câmpus. Agradece aos amigos que ainda fez em Prudente que ajudaram a chegar ao ponto de hoje em aprendizado e técnica como o produtor cultural, Haroldo Lobo.
Sala de aula
O professor também encontrou uma forma original de entrelaçar esses universos em sala de aula. A experiência ganhou força quando uma aluna violonista demonstrou interesse em estudar o som. Juntos, desenvolveram um projeto de iniciação científica com foco no ensino de ciências para crianças, explorando a acústica de forma lúdica.
Surgiram jogos, instrumentos e brincadeiras, entre eles, um jogo da memória sonoro feito com caixinhas que produziam diferentes timbres, desafiando os participantes a formar pares apenas pelo som. A proposta revelou como temas pouco abordados, como timbre e volume, podem ser trabalhados de maneira sensível e criativa.
Para o professor, essa abordagem rompe com a predominância de aulas teóricas e devolve o protagonismo ao fenômeno científico. “O conceito vai além da palavra ou da fórmula. Quando o fenômeno é vivido, o aprendizado é mais significativo”, defende.
Interdisciplinaridade
A redescoberta da música, agora pela construção do próprio violão, tem servido ao professor como uma ponte entre seus dois grandes interesses: a física e a arte. Ao retomar estudos sobre a história da ciência, ele se debruçou sobre os experimentos de Galileu e percebeu como a experimentação está no cerne do desenvolvimento científico. “Sem ela, talvez a gente não tivesse o que se tem hoje”, reflete.
Essa vivência prática o faz enxergar as conexões profundas entre campos tradicionalmente separados no ensino. Ele cita o professor João Zanetic (Ifusp), falecido em 2024, que defendia a física como parte da cultura, tanto quanto um samba de Noel Rosa ou um tango de Gardel.
Para Raboni, os conhecimentos artístico e científico não apenas dialogam, eles se entrelaçam. “A ciência também é um tipo de arte. A física está embutida na música, na pintura, na forma como os artistas começaram a representar a luz, por exemplo”, explica.
Mesmo pensando na aposentadoria, Paulo não quer deixar de lado suas paixões. Seu instrumento já recebeu elogios de especialistas, e ele sonha em continuar produzindo dois ou três violões por ano. “Se tiver um reconhecimento, ver um violão meu no palco com um músico importante, reconhecido, é uma coisa extraordinária. Eu tenho esse sonho ainda”, conclui.
“Comecei a tomar contato com colegas que tocavam muito bem. Estudei com Milton Nunes, professor famoso, violonista bom, mas numa fase complicada da vida: eu estava começando o mestrado”
Paulo Cesar de Almeida Raboni
Luthier por paixão
Fotos: Cedidas
O luthier cria até as rosetas, aqueles desenhos ornamentais ao redor da boca do violão peça por peça