Quando religião e  política se confundem

OPINIÃO - Marcelo Creste

Data 18/09/2025
Horário 05:30

Em “O Papa e Mussolini”, obra que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer em 2015, o historiador David Kertzer revelou, com base em arquivos do Vaticano, como a Igreja Católica e o regime fascista italiano firmaram uma aliança de conveniência. De um lado, o Papa Pio XI buscava segurança institucional e o fim da chamada “Questão Romana”, aberta desde a unificação da Itália. De outro, Benito Mussolini necessitava de legitimidade moral para consolidar seu poder autoritário.
O resultado foram os Pactos de Latrão, de 1929: o Vaticano tornou-se Estado soberano, recebeu indenização financeira e viu o catolicismo ser oficializado como religião da Itália. Em contrapartida, o fascismo ganhou um selo religioso de legitimidade que ajudou a anestesiar resistências sociais. O que parecia um pacto político foi, na prática, a fusão de dois poderes que, juntos, reforçaram um regime de opressão.
A história narrada por Kertzer tem lições para hoje. Também no Brasil assistimos à crescente mistura entre política e religião. Líderes religiosos apoiam candidatos como se fossem emissários divinos; políticos se apresentam como salvadores investidos de missão espiritual; teorias belicosas, como a teologia do domínio, defendem que cristãos devem conquistar todas as esferas de poder — da política à economia, da cultura à mídia.
Essa fusão é perigosa. Quando a religião se torna braço de projeto político, ela perde sua autoridade moral e arrisca trair a própria mensagem que deveria anunciar. Quando a política instrumentaliza a fé, transforma um espaço de liberdade em território de fanatismo e manipulação. A consequência é dupla: a democracia se fragiliza e a religião se corrompe.
Não foi isso que Jesus ensinou. Ao afirmar que “meu Reino não é deste mundo”, Cristo deixou claro que sua mensagem não se confunde com poder militar, econômico ou político. O Reino de Deus se manifesta na justiça, na solidariedade e no cuidado com os pequenos. Sempre que a Igreja se aliou a imperadores, reis ou ditadores em busca de privilégios, correu o risco de se afastar dos pobres e marginalizados — os mesmos que Jesus colocou no centro de sua missão.
A teoria do “poder divino dos reis”, que unia Igreja e aristocracia na Europa, ilustra bem esse risco: em nome de proximidade com os palácios, a Igreja muitas vezes se distanciou das ruas. No fascismo italiano, a lógica se repetiu. E ainda hoje, em novas roupagens, ela reaparece quando a fé é usada como trampolim político ou quando líderes religiosos buscam poder em vez de serviço.
A lição que Kertzer nos oferece é clara: a história mostra que alianças entre Igreja e regimes autoritários fortalecem ditaduras e enfraquecem a própria religião. O que parece um atalho para recuperar influência acaba sendo um desvio que leva à perda de credibilidade espiritual.
No fundo, política e religião têm papéis distintos. A primeira deve organizar a vida coletiva em base democrática, plural e inclusiva. A segunda deve inspirar valores éticos e solidariedade, sem se confundir com disputas partidárias. Quando esses mundos se misturam, ambos saem feridos: a política se contamina pelo fanatismo e a religião pelo pragmatismo.
A advertência de O Papa e Mussolini ecoa no presente: sempre que religião e poder se confundem, a sociedade corre risco — e a Igreja corre o risco maior de perder sua alma.

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