Romaria!

OPINIÃO - Raul Borges Guimarães

Data 24/01/2021
Horário 06:50

Não consigo mais me lembrar da última peça de teatro ou do espetáculo musical que eu tenha assistido antes da pandemia. O mundo virtual faz a roda do tempo girar em outro ritmo. Não há dia. Não há noite. Por outro lado, esta nova relação com o tempo faz emergir situações marcantes que andavam esquecidas. É o que ocorreu comigo no decorrer dessa semana. Eu senti uma saudade profunda dos shows da Elis Regina. O que ela diria de tudo isso que está ocorrendo no Brasil? Talvez ela me respondesse cantarolando uma das cantigas mais bonitas que foram interpretadas pela sua voz: Romaria, de Renato Teixeira.

O romeiro cumpre a devoção fazendo uma viagem, e, de romaria em romaria, os devotos desenham um círculo imaginário em torno de determinado santuário. Há círculos de alcance internacional, como os traçados pelos peregrinos que vão à Roma ou Jerusalém. Há os nacionais, como o de St. Patrick, na Irlanda; Czestochowa, na Polônia; ou de Guadalupe, no México. Os regionais como o de Padre Cícero, em Juazeiro, ou o do Bom Jesus da Lapa, nas margens do São Francisco. E há uma infinidade de círculos locais, em torno de um santuário numa vila, ou mesmo em capelas de beira de estrada.

As romarias, portanto, qualificam os espaços, atribuindo-lhes um centro, onde fica o santo, e uma periferia, onde vivem as pessoas que lhe rendem louvor. Entre estas e aquele, a distância simbólica é grande, pois em conversa de romeiro quanto mais longa a viagem, maior a devoção. Assim, as romarias representam de maneira mais clara o tema da diferença entre o sagrado e o profano.

Afinal, a morada do santo não é um lugar como os outros. Sua origem não seguiu as normas comuns de fundação de uma nova localidade, mas resultou de uma sucessão de acontecimentos miraculosos que escapam à esfera do controle humano. O local foi estabelecido pelo próprio santo, a despeito dos vários poderes da criação: muitas vezes resistiu ao fogo ou aos planos de alguma autoridade eclesiástica que preferia ter a imagem na igreja da matriz. É por isso que o próprio local da primeira aparição é significativo. Não é por acaso que muitas imagens surgiram das águas, parando numa pedra do rio. Outras aparições trazem o santo em uma caverna e muitas outras situações inusitadas. Sem dúvidas a localização do santo em pontos da natureza que escapam ao espaço comum da apropriação humana é uma característica frequente que fala por si.

E eu? Só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar.

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