Nas reflexões humanísticas sobre o bem-estar, adota-se uma concepção ampliada de saúde, compreendendo-a como um fenômeno intrinsecamente ligado a um conjunto de fatores condicionantes e determinantes. Dessa forma, torna-se essencial analisá-la dentro de uma perspectiva estrutural, considerando suas nuances socioeconômicas, políticas e epidemiológicas. Nesse contexto, proponho uma reflexão sobre as contradições que envolvem a aparente popularização da corrida e das práticas de musculação, destacando os desafios e obstáculos que ainda persistem. Afinal, conforme estabelece a Lei nº 12.864, o exercício físico é um fator condicionante e determinante da saúde. Assim, analisar as contradições que permeiam o campo esportivo é uma forma de esclarecer ambiguidades que comprometem uma dimensão fundamental do que atualmente se compreende como saúde.
Segundo uma pesquisa divulgada pela Sociedade Brasileira de Cardiologia, o número de infartos no Brasil aumentou de forma alarmante, especialmente entre os jovens. Entre janeiro e o início de setembro de 2024, mais de 271 mil pessoas perderam a vida em decorrência de infartos, acidentes vasculares cerebrais (AVCs) e outras complicações cardíacas. Além disso, de acordo com o Ministério da Saúde, estima-se que aproximadamente 50% das mulheres e 20% dos homens com mais de 50 anos sofrerão uma fratura osteoporótica ao longo da vida. Atualmente, entre 10% e 15% da população brasileira convive com essa condição. No que se refere à obesidade, o cenário também é preocupante. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha revelou que 59% dos brasileiros estão acima do peso, embora apenas 11% tenham recebido um diagnóstico médico formal. Muitas pesquisas possuem um caráter prospectivo e, em essência, refletem uma visão pessimista em relação ao futuro. Por esse motivo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil aparece na 125ª posição em termos de saúde.
Não obstante, em paralelo aos dados apresentados, observa-se um aparente crescimento na adesão à cultura fitness, refletido no aumento do número de corredores, profissionais da saúde, academias e centros de práticas esportivas. Por exemplo, segundo dados levantados pela plataforma Cupom Válido, com informações do IBGE e da Numbeo, os brasileiros ocupam a segunda colocação no ranking mundial dos que mais frequentam academias. De acordo com a Demografia Médica CFM (2024), houve um aumento recorde no total de médicos no país, o que pode, inclusive, representar um cenário de risco para a assistência. Segundo dados fornecidos pelo INEP e por outras sinopses estatísticas do ensino superior, houve um crescimento exponencial das faculdades de Educação Física, processo que atingiu seu ápice até 2017, indicando um saturamento do mercado de trabalho. Com a expansão dos cursos EAD, a preferência tem sido pelo bacharelado. Ademais, de acordo com o Relatório Anual sobre Tendências do Esporte do Strava, o aumento no número de praticantes fez da corrida o esporte mais praticado no Brasil.
Diante dos fatos acima apresentados, torna-se nítida uma contradição: o aumento quantitativo de profissionais da saúde e de centros de práticas esportivas não implica, necessariamente, o progresso qualitativo do bem-estar. Embora uma pluralidade de causas explique esse paradoxo, destaco aquela que considero a força matriz e motriz do problema, a saber: a mercantilização da saúde, que fomenta a chamada alienação. Diversos fatores estruturais, como as desigualdades econômicas e a carência de acesso da população a bens mínimos, afastam muitas pessoas do exercício físico. Por outro lado, os indivíduos que têm acesso às práticas esportivas são facilmente cooptados por essa mercantilização da saúde, a qual sustenta uma concepção artificial do desempenho físico. Esse fenômeno fomenta o chamado “capitalismo farmapornográfico”, que, por exemplo, ao instrumentalizar o corpo, estimula a utilização de hormônios e anabolizantes.
Destarte, verifica-se a ampliação do controle e da moderação dos corpos, bem como da gestão dos desejos e das identidades. Este é o núcleo da Farmacopornografia. Não há dúvida de que o aumento no número de infartos entre os jovens está relacionado ao uso excessivo de anabolizantes. Esse controle dos corpos sustenta vícios e práticas perniciosas para o bem-estar. A pressão para manter uma saúde artificial e o "corpo ideal" apenas contribuem para um cenário de doenças e morbidades profundas.
A chamada mercantilização da saúde nada mais é do que a sua transformação em mercadoria, analisando-a exclusivamente sob a ótica do lucro. Para ilustrar esse fenômeno, basta tomar como exemplo paradigmático as academias de rede, cujos proprietários são, em grande parte, empresários sem formação na área da saúde. Algumas dessas academias se tornaram sociedades anônimas, ou seja, empresas de capital aberto com uma diversidade de sócios. Ora, uma das bases para o desenvolvimento físico saudável reside na consideração do princípio da individualidade biológica, levando em conta as particularidades e especificidades de cada sujeito. No entanto, pode-se esperar que uma sociedade anônima conheça, de fato, as circunstâncias próprias da realidade de seus clientes? O que efetivamente interessa às academias de grande porte não passa da acumulação incessante de capital.
Nessa conjuntura, pode-se falar da chamada “alienação”, que ocorre mais propriamente quando não nos identificamos com o produto de nossas ações, ou seja, quando não reconhecemos um aspecto de nossa individualidade no fruto de nosso trabalho. Os donos e sócios das academias de rede não possuem um compromisso fundamentado e sólido com a saúde de seus clientes. Nesse sentido, ao buscarem o lucro a todo momento, desprezam a individualidade biológica. Assim, embora admitam um compromisso aparente com a saúde, seu trabalho é puramente instrumental, sem qualquer vínculo significativo com o bem-estar em sua acepção ampliada. Eis aí a noção de alienação. O alto fluxo de clientes nesses estabelecimentos impede que os funcionários e profissionais da saúde atribuam atenção individualizada às pessoas. Portanto, apesar de os brasileiros ocuparem o segundo lugar em matrículas em academias, as doenças da modernidade só aumentam. Num cenário de profunda mercantilização da saúde, não se pode falar em um aprimoramento qualitativo do bem-estar.
No campo da corrida, a situação se repete, embora com nuances e características próprias. Sua popularidade, em última instância, revelou uma profunda banalização do esporte. Trata-se de um fenômeno facilmente observável nas redes sociais. Ainda que, em certo sentido, seja possível extrair uma dimensão positiva, pois as pessoas passaram a reconhecer a imprescindibilidade do exercício físico na promoção da saúde, é necessário analisar essa popularização com um olhar crítico, a fim de evitar o crescimento das contradições que assolam o campo da saúde. Num primeiro momento, deve-se destacar que essa banalização fomentou uma crescente instrumentalização da atividade física, uma instrumentalização nociva. Digo "nociva" porque há uma instrumentalização ordenada e legítima. Certamente, o esporte não é um fim em si mesmo. As pessoas praticam exercícios físicos com finalidades que vão além da própria atividade. Dito de outro modo, buscam a saúde, a superação pessoal, uma forma de extravasar e exaurir um descontentamento ou, simplesmente, um momento a sós consigo mesmas.
Não obstante, a instrumentalização gerada pela banalização sustenta a mercantilização, que, por sua vez, provoca a reificação do esporte, tornando a corrida algo mais complexo do que realmente é. Essa postura apenas fomenta práticas consumistas e comparações desmedidas. Os usuários das redes sociais que acompanham influenciadores sentem-se compelidos a se atualizar constantemente, comprando as últimas novidades do mercado e adquirindo, de forma incessante, produtos atrelados à prática esportiva a que se dedicam: tênis, relógios, dietas, rotinas, planejamentos, óculos e assim por diante. No entanto, o consumo não implica um aumento na qualidade física, ou seja, não é uma condição imprescindível para o desempenho atlético. Não se trata aqui do desejo por um tênis melhor para os treinos ou de um relógio para monitorar as métricas. O que está em discussão é a obsessão gerada pela banalização. Vejamos, agora, uma das faces desse fenômeno.
No contexto da geração Z, isto é, aqueles que nasceram após 1995, a distância média percorrida foi de aproximadamente 9 km por semana. Levando-se em consideração que a OMS recomenda de 150 a 300 minutos de atividade física por semana, percebe-se, novamente, uma contradição. Quanto à velocidade dos corredores, a média de pace no Brasil foi de 6:48 min/km. Na maioria das planilhas de treinamento, são previstos 3 dias por semana dedicados à corrida. Supondo que os corredores da geração Z corram 3 vezes por semana, com um pace médio de 6:48 min/km, eles praticam cerca de 1,02 horas de esporte por semana, o que equivale aproximadamente a 1 hora e 1 minuto. Dessa forma, constata-se que esse tempo é inferior ao recomendado pela OMS, que sugere entre 150 e 300 minutos de atividade física por semana. Como alguém pode se autodenominar “corredor” se nem mesmo cumpre o mínimo recomendado pela OMS?
A questão central que defendo é que, ao me dedicar a um esporte, devo esforçar-me ao máximo dentro dos limites de minha individualidade biológica. A banalização da corrida, por sua vez, contribui para sua mercantilização, fomentando um mercado próprio e estimulando o crescimento de influenciadores digitais. Estes, por contarem (em sua maioria) com condições financeiras mais favoráveis à dedicação esportiva, acabam gerando, na maioria dos corredores, uma frustração que se manifesta na compra incessante de produtos e serviços que, em última análise, pouco contribuem para um desempenho substancial. Nesse contexto, surgem diversas figuras caricatas que defendem dietas milagrosas, aparelhos revolucionários e respostas simplistas, muitas vezes redutoras. Eis o cerne da banalização da corrida. Percebe-se, então, uma obsessão exclusivamente nominal e identitária. Com o aumento de influenciadores nesse meio, surge uma pressão para que os corredores alcancem rapidamente o status de “corredor”. Trata-se, portanto, de um anseio por pertencimento a um grupo, não propriamente uma busca autêntica e significativa pelo desenvolvimento pessoal no esporte.
A essência da corrida está no progresso respeitando a individualidade biológica e o treinamento periodizado. Certamente, ao seguir uma periodização adequada e observar os princípios fundamentais da prática esportiva, um atleta amador ultrapassará facilmente os 9 km semanais. Ao dar o melhor de si numa determinada prática esportiva nos blindamos, de certa forma, dessa fenômeno da mercantilização. Não se trata de uma garantia infalível. Em outras palavras, ainda que seja uma condição necessária, não é suficiente. Digo isso porque há uma outra face da banalização que sustenta outro vício, a saber: o individualismo. Trata-se de uma fragilidade advinda novamente da postura de tornar a corrida algo mais complexo e maior do que realmente é.
Dito de outro modo, trata-se de uma instrumentalização nociva. Diante dessa cultura de massa dos corredores, transmite-se a impressão de que a corrida deve ocupar um espaço imenso na vida individual, chegando até mesmo a se tornar o núcleo da pessoalidade. Caso isso ocorra, outras esferas e nuances que verdadeiramente caracterizam o indivíduo serão comprometidas, como as relações sociais, o campo profissional, a família e a espiritualidade. Nessa conjuntura, proliferam-se o orgulho, a vaidade, a exposição constante, a competitividade exacerbada e a necessidade incessante de autoafirmação. Assim, a concepção artificial de saúde se expande sem grandes dificuldades, afastando muitas pessoas do verdadeiro bem-estar físico, mental e social.
Sem sombra de dúvida, um atleta amador encara sua prática esportiva como uma atividade significativa em sua vida. Ora, é necessário que todos assim o façam, pois, do contrário, o esporte se tornaria enfadonho e até mesmo sádico. No entanto, o que realmente importa é a ordenação dos fins. Na filosofia agostiniana, a virtude consiste na ordenação do amor. Nesse sentido, os bens superiores devem prevalecer sobre os bens inferiores; um bem maior deve ser mais amado do que um bem menor. Essa ideia pode ser aplicada ao campo do esporte. O exercício físico, enquanto um fator condicionante e determinante da saúde, deve ser compreendido como um valor a serviço de outros fins, como a promoção do bem-estar em sua dimensão ampla, o desenvolvimento pessoal, a superação de vícios e o aprimoramento individual. Buscar a saúde em sua essência é, também, uma postura virtuosa e, até mesmo, política. Precisamente por esse motivo, a Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde como um direito fundamental vinculado ao exercício da cidadania.
Observando essa “hierarquia dos fins” e superando a si mesmo no esporte, é possível aprimorar-se como indivíduo, ao menos em uma das dimensões do que significa ser humano. Afinal, nas palavras de John Stuart Mill, “é na proporção do desenvolvimento de sua individualidade que cada pessoa se torna mais valiosa para si mesma e, portanto, capaz de ser mais valiosa para os outros”.
Em última análise, o verdadeiro foco e motivação no esporte não devem ser limitados a competições, equipamentos ou adversários, mas à essência que torna cada prática tão única: o atleta em si. Nesse sentido, cada indivíduo tem seu próprio ritmo, peso, idade, contexto e, acima de tudo, um corpo que é exclusivamente seu. Essa é a individualidade biológica, que merece, ou melhor, que deve ser respeitada e valorizada!
Enfim, a reflexão aqui apresentada não tem o intuito de desestimular o desejo das pessoas pela corrida, mas sim de promover um olhar crítico sobre um fenômeno, reconhecendo a importância de analisar suas contradições para que, com isso, possamos avançar substancialmente na promoção do conceito ampliado de saúde. Finalizo com as palavras de Kierkegaard em sua obra A Doença para a Morte: “Saúde é, em última instância, a capacidade de resolver contradições”.