Sobre sangrar e viver

Roberto Mancuzo

CRÔNICA - Roberto Mancuzo

Data 19/07/2022
Horário 06:00

Ernest Hemingway, vocês sabem, foi um escritor norte-americano, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1954. Viveu por anos a vida que sempre quis, um ícone perfeito do homem que se bastava, deixou uma obra inigualável, mas que também sempre carregou dentro da alma a dor de muitas misérias humanas.
É dele a frase que me inspirei para a crônica de hoje: “Tudo que você precisa fazer [para escrever] é sentar-se diante da máquina de escrever e sangrar.” 
Confesso que sempre tive medo de que um dia eu, escritor que sou, tivesse que viver esta realidade para produzir textos mais intensos. Mas, enfim, aqui estou eu diante da máquina de escrever (digital, claro) e sangrando. 
Só peço que não se assustem, tenham dó ou queiram ajudar de alguma forma porque é preciso ver um ensinamento nesta frase e que faz muito mais sentido para a vida que temos. 
A perspectiva de sangrar para escrever, claro, é só uma alegoria. No fundo, quem não sangra nesta jornada de existência? Quem não morre dia após dia por amor, amizade, trabalho e família? Escrever as páginas da vida exige muito mais do que boa vontade, resiliência ou falsear nas redes sociais.
É fato que em meio às nossas questões mais filosóficas e não menos reais, em meio à minha própria experiência de vida recente, temos que viver entre o ter e o não ter e entre o que realmente construímos e o que é apenas sonho e devaneio. Ignorar isso é só adiar o que mais cedo ou mais tarde vai explodir bem no meio da alma.
É certo que queremos ser felizes, bem cuidados e superiores a qualquer drama. Mas é claro que não conseguimos e nem podemos ter este sonho infantil. Ao contrário, precisamos ter consciência da presença da dor e da incompletude para pensar em felicidade ou realização pessoal.
Eu estou convencido de que felicidade existe, mas nela não está ausente o sofrimento do dia a dia ou a angústia de querer conseguir logo tudo o que para você é certo e claro. O problema aqui é superar o tempo ou a acomodação. É ser o menino que carregava água na peneira, do poema de Manoel de Barros.
E aí entendo Hemingway ainda mais quando ele diz que é preciso “sangrar para escrever”. Ou “sangrar para viver”. 
É depois de muito tempo que se aprende, que se ganha consistência e força. É depois da caminhada que surge o destino e não em um mero piscar de olhos. É depois do movimento que o milagre acontece.
Viver é sangrar em torno de um ideal, de uma busca, da crença em ser bom, em ganhar a vida, cuidar bem dos filhos, de ter um amor para a vida toda e talvez o que chamamos de “sangramento” possa ser trocado por “experiência”.
Enfim, queria não sangrar mais. Queria que fosse mais fácil, que o tempo me dissesse logo se estou certo ou errado. Mas que homem eu seria se fosse assim?
 

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